A técnica de vinificação em talhas de barro trazida pelos romanos há mais de dois mil anos nunca deixou de ser praticada no Alentejo. Mas hoje há já grandes produtores, como o Esporão, Casa Alexandre Relvas, Cortes de Cima e Adega José de Sousa, entre outros, a apostarem nesta técnica milenar, de forma mais ou menos tradicional. E está em preparação o processo de candidatura do Vinho de Talha a Património Cultural e Imaterial da Humanidade.
Será que é apenas mais uma moda? Como tantas que de tempos a tempos aparecem no mundo do vinho… Este é um dos receios que alguns produtores nos manifestaram, temendo que se banalize a designação Vinho de Talha e adultere a tradição ao misturá-la com novas técnicas, dando ao consumidor ‘gato por lebre’. “É preciso que não se estrague este património alentejano, vendendo a dois euros a garrafa ou dizendo que só porque passou por talha é vinho de talha. Tem que se seguir o que era feito antigamente”, alerta Domingos Soares Franco, enólogo da Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz.
Mas todos com quem falámos nos garantem que o objetivo de produzir Vinho de Talha é ter mais um produto para oferecer aos seus consumidores, em Portugal e, principalmente, lá fora. Um produto único, tradicional e que faz parte da história do vinho no Alentejo.
Alexandre Relvas considera que “muito interessante neste renascimento do vinho de talha é a interpretação que cada enólogo faz de uma técnica ancestral”, salientando que respeitar a tradição não implica fazer tudo igual. Aliás, entre as várias regiões e vilas alentejanas sempre houve algumas diferenças nos métodos de fazer este vinho milenar.
A Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA) é responsável pela classificação dos Vinhos de Talha DOC, que têm de respeitar as regras definidas, como a manutenção das massas nas talhas, pelo menos até ao S. Martinho, como era tradição.
As produções, mesmo dos ‘grandes’, são muito baixas, rondando as 4.000/5.000 garrafas (de vinho Branco e Tinto), com exceção para a Amareleza Vinhos (Adega Piteira), na Amareleja – que desde o séc. XIX sempre fez vinho de talha – cuja produção ronda as 20.000 garrafas e para António Honrado, produtor de Vila de Frades e proprietário do restaurante País das Uvas, que decidiu “triplicar a produção este ano para cerca de 15.000 garrafas (cerca de 11.000 de Tinto e 4.000 de Branco) porque a procura do seu Honrado – Talha foi muita”.
Os estudos de tendências do consumo, não só no vinho mas em todo o setor agroalimentar, mostram que os consumidores procuram, cada vez mais, produtos saudáveis, menos processados, feitos com métodos tradicionais, num ‘regresso ao passado’. Logo, o Vinho de Talha entra neste grupo, sendo um produto praticamente ‘natural’, onde os produtores, em geral, apenas adicionam um pouco de sulfuroso e fazem correção da acidez.
Respeitando a tradição ou inovando
Dos oito produtores com quem falámos há quem respeite ‘à risca’ a tradição e quem tenha introduzido algumas alterações porque: “é muito difícil fazer um bom vinho de talha”, admite à ENOVITIS o enólogo de Cortes de Cima. “O processo tradicional tem algumas limitações e se não houver atenção aos detalhes podemos ter um produto que, sendo um vinho de talha, pode não ser um bom vinho”, adianta Hamilton Reis.
Por isso, preferiu perder a possibilidade de classificar o Amphora como DOC Talha e o lote de Aragonês, Syrah, Touriga Nacional e Trincadeira, fermentou em talhas de boca larga e cerca de 600kg de capacidade apenas durante cerca de 15 dias, seguidos de estágio em amphoras de boca estreita de 150L. Para a classificação o vinho tem de ficar nas talhas em contacto com as massas, pelo menos, até ao S. Martinho. Curiosamente a maioria dos produtores até o deixam ficar muito mais tempo porque “o frio ajuda a estabilizar o vinho”, diz-nos António Honrado, acabando por só o retirar no mês de janeiro. “Os antigos na sua sabedoria popular diziam que ‘o frio coze o vinho’”, lembra o produtor da Vidigueira. Isto embora nessa altura quase todo o vinho de talha fosse bebido como vinho novo, até ao final do ano, havendo poucos produtores a colocá-lo em garrafão e muito menos em garrafa.
O ‘sabor’ do barro
O barro é um material altamente poroso e, por isso, a tradição é as talhas serem revestidas normalmente com pez Louro (resina de pinheiro e cera de abelha) para não se perder vinho, mas muitos produtores estão a retirar este revestimento ou, pelo menos, a esperar que ele vá desaparecendo porque não querem que confira demasiado sabor ao vinho: “tem um aroma e cheiro próprio que passa para o vinho, desvirtuando-o”, considera Hamilton Reis.
Já os mais ‘puristas’ defendem que esse aroma é precisamente o que se espera e faz parte do Vinho de Talha, frisando que sem revestimento se pode perder muito vinho.
Mas o enólogo de Cortes de Cima assina por baixo da descrição que está no site para o Amphora: “o barro mantido puro, por ausência de revestimento nas amphoras utilizadas, permite natural evaporação e concentração do vinho, a sua porosidade facilita contacto controlado com o oxigénio ao longo dos 12 meses de maturação”. Hamilton mandou fazer duas talhas novas em Beringel em 2014, sem qualquer revestimento e tem vindo a raspar o revestimento das que já possuía, para as poder usar.
Também Domingos Soares Franco nos diz que “temos vindo a retirar algum revestimento para que não confira muito sabor ao vinho”, mas continua a usar talhas com revestimento antigo, que “lhe dá algumas notas de especiarias”. A adega José de Sousa possui talvez a maior coleção de talhas do País: 114, das mais variadas proveniências, como S. Pedro do Corval, Vidigueira, Elvas, etc..
A mesma escolha fez Pedro Ribeiro, enólogo da Herdade do Rocim, embora nos explique que “quem faz o vinho é o nosso caseiro, Pedro Pegas, que é quem sabe porque sempre fez vinho de talha, eu só supervisiono”.
O enólogo da José Maria da Fonseca, que comprou a Adega José de Sousa em 1986, explica-nos que também teve ajuda: “aprendi com o velho adegueiro do tempo do José de Sousa”, mas depois descobriu um texto de 1876 do agrónomo António Augusto de Aguiar onde este descreve as técnicas de produção do vinho de talha, que Domingos Soares Franco segue hoje. Isto, apesar de ter decidido que quando o vinho sai das talhas, em novembro, e após a prensagem das massas, uma parte vai estagiar estagia nas talhas e outra em cascos de castanho, para amaciar mas não marcar muito o vinho.
Além de fazer renascer uma tradição que esteve quase em extinção, o objetivo hoje de fermentar o vinho em talhas de barro é aproveitar as características que este material confere ao vinho, como frescura e ‘sabor’ a terracota. Os tintos ficam mais ‘leves’ e os brancos mais ‘gastronómicos’.
Um processo simples e natural
Com algumas diferenças entre regiões e produtores, na elaboração do vinho de talha a uva é ligeiramente pisada, depois pode ou não ser desengaçada, normalmente à mão na mesa de ripanço, e aí coloca-se cerca de 30% do engaço no fundo das talhas e fica a fermentar. Durante esse período, que dura cerca de oito dias, é fundamental remontar a massa, normalmente com um rodo de madeira duas a quatro vezes por dia para fazer baixar a manta.
Alguns produtores, como a Amareleja Vinhos que faz vinho de talha ininterruptamente na sua adega da Amareleja desde 1880, sempre tiveram estes instrumentos, e outros, mas no Esporão, por exemplo, a enóloga Sandra Alves conta-nos que “mandei fazer especialmente utensílios de madeira, sob a orientação do nosso adegueiro, para mexer a manta nas diferentes fases”.
Sandra Alves conta-nos que depois de terem começado as experiências com vinho de talha com uvas das vinhas velhas que o grupo tem em Portalegre, mais recentemente “comecei a andar à procura de vinhas velhas aqui na região, falando com antigos produtores e proprietários, para comprar uvas de castas tradicionais, que sempre foram usadas na produção de vinho de talha, como a Moreto e a Diagalves”.
A enóloga que é a responsável pelo vinho de talha no Esporão confessa: “apaixonei-me completamente por este projeto porque é história”.
O formato das talhas ajuda a controlar a temperatura mas a maioria dos produtores também as rega no período da fermentação para baixar ainda mais a temperatura e a pressão que pode fazer rebentar as talhas. Aliás, é por isso que em todas as adegas antigas existe um alçapão no chão – o chamado ‘ladrão – para onde corria o vinho caso uma talha rebentasse e que tinha, antigamente, uma outra talha por baixo para que esse vinho não se perdesse.
Outro instrumento usado, por exemplo na Amareleja e também na Vidigueira, é a cana com erva junça (uma erva comum na região e que cujas folhas são compridas e triangulares) que se coloca num orifício no meio do batoque – a rolha que tapa o buraco que existe no fundo da talha e por onde é retirado o vinho. “A junça ajuda a ‘filtrar’ o vinho, apenas os primeiros litros saem turvos, depois vai logo ficando limpo, não havendo assim necessidade de voltar a colocar o vinho na talha para passar outra vez”, explica à VIDA RURAL José Piteira, enólogo e proprietário da Amareleza Vinhos.
Sem isso, o vinho, apesar de ser filtrado pelo engaço que é colocado no fundo das talhas, tem sempre de ser colocado de novo na talha para, pelo menos, uma segunda passagem.
Como já dissemos, os processos são muito idênticos mas com pequenas diferenças. Alexandre Relvas explica-nos que nos seus Amphoras (da Gama ART.TERRA) “como a pressão nas talhas baixa muito a partir do meio da fermentação, deixamos de fazer remontagem das massas e tapamos as talhas”. A grande maioria dos produtores também tapa as suas talhas de forma mais ou menos estanque.
“Vinho artesanal com identidade”
A descrição é do agrónomo Jorge Cardoso que produz o Outeiros Altos Vinho de Talha, em conjunto com a esposa, Fernanda Rodrigues, também agrónoma. O casal vive com a filha, Constança, na herdade perto de Estremoz e produz vinho e outras culturas, tudo em produção biológica. “É um vinho difícil, tenho de o explicar, dá um trabalho enorme a vender mas que me dá um enorme gozo fazer”, adianta o produtor.
A tradição antiga era colher o barro da própria região onde se produzia o vinho para fazer as talhas, por isso há talhas de diversas proveniências, explica-nos Jorge Cardoso que tem percorrido o Alentejo para comprar talhas nas diversas regiões produtoras, “incluindo Amieira do Tejo que é muito pouco conhecida”. Essas diferentes origens do barro, bem como a mistura de resina e cera, além das castas e terroirs diversos do Alentejo conferiam caraterísticas únicas aos vinhos de talha de cada uma das zonas e vilas produtoras.
Também o enólogo da Herdade do Rocim, Pedro Ribeiro, salienta que “estes são vinhos que têm de ser explicados, mas que têm tido uma aceitação excecional, principalmente lá fora, porque têm sido ‘adotados’ por sommeliers de topo”.
A exportação é, aliás, o destino da maior parte dos vinhos de talha, nomeadamente para o HoReCa e lojas especializadas. Em Portugal, é também nestes dois canais que estão disponíveis estes vinhos, mas a distribuição moderna está atenta aos desejos do consumidor mais enófilo, pelo que a Cave do Continente, por exemplo, já oferece igualmente alguns vinhos de talha como o Piteira e o Amphora da Casa Agrícola Alexandre Relvas. “O vinho de talha é um vinho de culto, onde se buscam coisas diferentes como um sentido de lugar e de ancestralidade”, defende Alexandre Relvas.
Castas antigas dominam
O vinho Branco de Talha sempre teve mais tradição, nomeadamente na Amareleja e Vidigueira (Vila de Frades), dando destaque a castas antigas que, sem o renascimento deste vinho, estariam quase desaparecidas, como a Manteúdo e a Diagalves. Já nas castas tintas, o destaque vai para a Moreto, sendo usada na região de Reguengos e Amareleja e estando incluída no Piteira, no Puro Talha (lançado em outubro e que inclui também outra casta antiga e quase desaparecida: a Grand Noir) da Adega José de Sousa, no vinhas velhas Vinho de Talha do Esporão (que tem até um Vinho de Talha monovarietal de Moreto) e no Amphora da Casa Alexandre Relvas.
Em Vila de Frades e na restante região da Vidigueira e Cuba reinam os brancos de Antão Vaz, acompanhada muitas vezes pela Roupeiro, Perrum, Rabo de Ovelha e também pela Manteúdo.
Em muito Tintos de talha, hoje já está também habitualmente presente a Aragonês e a Trincadeira, entre outras.
Apesar de o vinho Branco ter maior tradição no Vinho de Talha nas regiões onde sempre se manteve alguma produção, hoje o Tinto existe em maior quantidade, talvez porque, como refere Domingos Soares Franco, “o Tinto é mais fácil de trabalhar, com o Branco tem que se ter cuidado para não oxidar”. Mas José Piteira defende, por seu lado que “no Vinho de Talha a oxidação não pode ser considerada um defeito porque é uma caraterística”.
Branco ou Tinto é igual
José Miguel Almeida, que foi fundador da Vitifrades, Associação de Desenvolvimento Local – e que tem uma nova direção há pouco mais de um mês –, dirige hoje os destinos da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito e frisa que “o vinho de talha é o único tipo de vinho em que o processo de vinificação é igual para o Branco e o Tinto”.
Além disso, o presidente da ACVCA lembra que “na região também sempre houve a tradição de fazer vinho palhete, o chamado ‘petroleiro’, porque se usavam uvas de vinhas velhas onde estavam misturadas castas brancas com algumas (poucas tintas)”.
O responsável adianta que a Associação dos Vinhos Históricos de Portugal (de que os Vinhos de Talha são fundadores), sob proposta do professor Virgílio Loureiro, está a analisar a criação de uma subcategoria dos Vinhos de Talha: o Petroleiro de Vila de Frades.
Na vindima deste ano a Adega da Vidigueira estreou a sua ‘Casa das Talhas’: “fizemos cerca de 4.000 litros de vinho Branco, proveniente de vinhas centenárias, consociadas com oliveiras e sem arames, à moda antiga, com mistura de castas, onde se destacam Antão Vaz, Roupeiro, Manteúdo, Diagalves, Larião e Perrum.
Sobre a possibilidade de longevidade deste vinho, José Miguel Almeida diz-nos que a resposta antiga era: “só se bebe vinho de talha enquanto há vinho novo”. Mas, admite, “na verdade a longevidade é uma incógnita, depende muito da robustez microbiológica”, salientando que “muito há a experimentar e estudar no que diz respeito aos vinhos de talha”, considerando que a proliferação de vinhos de talha “é fantástica para diversificar o produto e para chamar a atenção do consumidor”.