Partiu durante um ano à descoberta dos tesouros gastronómicos escondidos por Portugal e aprendeu que pequenos produtores também fazem “grandes produtos” que podem agora ser provados na nova mercearia lisboeta Comida Independente.
Fez carreira em várias multinacionais durante duas décadas, mas o culto da mesa e a vontade de “voltar à terra” levaram-na a partir à descoberta de um país cheio de património gastronómico por saborear. Uma viagem sem retorno, sobretudo agora que abriu uma mercearia no coração de Lisboa que se compromete a reunir o melhor da produção nacional ainda por conhecer.
Rita Santos, fundadora da Comida Independente, conta-nos que partiu com a premissa de reunir “produtos de pessoas com sabedoria, interesse e profundidade”, já que são esses, segundo Rita, que oferecem “uma experiência realmente especial quando estamos a provar”.
Um ano de viagem pelo país para descobrir alguns desses produtos, revela, tornou-se num trabalho que está longe de estar terminado. “Sobre comida aprendi realmente muita coisa, mas aprendi também muito sobre o estado do país, sobre a natureza humana…[risos] A comida é uma coisa muito transversal. Há apaixonados pela comida em todos os meios sociais, em todas as regiões…O meu processo de pesquisa foi como um novelo (…) Fiz uma pesquisa quase jornalística. Por exemplo, o caso do azeite Monterosa: cheguei a Moncarapacho, falei com os produtores, visitei o olival, percebi como era feito o azeite, provei e depois perguntei o que é que havia ali por perto que fosse bom. Disseram-me que ali perto haviam uns ‘tipos’ em Alcoutim, a produzir porco fora de série… Ia praticamente sem agenda, e se tivesse dois ou três produtores para visitar naquele dia, chegava à noite e ainda não tinha terminado as visitas porque tinha mais produtores para ver no dia seguinte, porque as pessoas falavam-me sempre de mais alguém.”
A comida é uma coisa muito transversal. Há apaixonados pela comida em todos os meios sociais, em todas as regiões…”
Não escolheu todos para porem pé na mercearia recentemente aberta, até porque “o facto de as coisas serem artesanais e de pequena escala não significa que tenham interesse.” “Há pessoas muito progressistas com os produtos e fazem coisas um bocadinho excêntricas e eu não estava tão interessada nessa dimensão, porque acho que a gastronomia, nesta lógica de ser uma coisa transversal, é também património. É identidade. Portanto, se formos encontrar as nossas origens nesses pratos, também estamos a preservar essa identidade”, confessa Rita Santos.
“Somos uma loja viva”
Para além de dar voz a produtos que traduzissem o verdadeiro património gastronómico do país, e aqueles que dão a cara por eles, a fundadora da Comida Independente queria criar um projeto com uma dimensão de causa.
“Este projeto levou um ano e meio a preparar. Há um investimento que não é só financeiro, é sobretudo de vida, de tempo, de interesse, e isso é mais raro…Não estou a dizer isto em mérito próprio, mas não via isto de outra forma. Eu podia ter pegado neste dinheiro e ter feito outra coisa qualquer muito mais lucrativa… Para mim tinha que ter uma dimensão de causa e de amor a esta ideia”, defende.
Muitas vezes mal representados noutros espaços de comércio, os produtores escolhidos para a mercearia da Rita têm todos “uma história por trás” que pode ser conhecida não só na Comida Independente, mas também nas redes sociais da loja. Para além disso, revela, “houve o cuidado de criar uma loja onde as pessoas pudessem vir e comprar de tudo. Hoje há muito aquela lógica das mercearias gourmet, onde se vai comprar um presente…Nós aqui somos uma loja viva, com legumes, com fruta, com carne, com arroz, com feijão…”
E tudo isto é vendido na sua época, uma forma “de expressão do clima e da estação em que estamos”, até porque os frescos “são melhores no seu auge”, acredita. “Todas as nossas etiquetas têm a indicação de origem e temos mapas nas paredes com a indicação dos produtos aqui presentes por região e onde as pessoas podem escrever, numa lógica colaborativa, porque toda a gente tem algum produto da sua terra que conhece e acha especial. O nosso fornecedor de frescos é só um, uma quinta que nos traz o que está na estação, portanto nós nunca sabemos o que vamos receber. Para além disso, aquilo que não temos fresco porque não está na estação temos em conserva.”
Consumir desta forma exige, no entanto, “um trabalho pedagógico”, mas “há quem queira ouvir e venha à procura disto”. De acordo com Rita Santos, existem cada vez mais consumidores interessados em conhecer estes pequenos produtores que criam produtos com história e até a pagar mais, “mas ainda são poucos”.
“Se cultivarmos esse público e se chegarmos a essas pessoas e tivermos vontade de mudar um bocadinho o paradigma vamos no caminho certo. Ainda por cima nós não somos um país de escala. Somos um país pequeno. A mim surpreendeu-me muito, quando andei a fazer este trabalho, a quantidade de estrangeiros que temos, por exemplo, a fazer Medronho em Monchique , citrinos no Cercal do Alentejo, e queijo de cabra no Cartaxo…E depois penso ‘Mas nós andamos aqui a dormir, com certeza…’ Isto é a nossa terra e está abandonada. Há muitas quintas abandonadas porque eventualmente também não há quem as queira trabalhar, porque quem as trabalha também é pouco compensado…”
Promover a produção local, e o consumo do que é local, pode ser, segundo a fundadora da Comida Independente, também uma forma de combater a desertificação de algumas zonas do país. “Quando falamos de comida ou de produção agrícola, seja ela no vinho, no azeite ou nos hortícolas, estamos a falar também de como as pessoas se organizam socialmente no território. Por exemplo, quando o país foi devastado pelos fogos, falei com bastantes produtores porque estava em contacto com eles, inclusive fiz algumas visitas à Serra da Estrela, e fiquei impressionada. Uma das coisas que percebi é que a vinha é um ‘corta-fogo’ extremamente eficaz. E depois penso: ‘Porque é que não há mais vinha?’. O vinho até é uma das áreas onde eu vejo uma atividade com mais fôlego. Os nossos vinhos são muito apreciados no estrangeiro e os produtores que tenho aqui reunidos só não vendem tudo para o estrangeiro porque ainda fazem pressão para vender algumas coisas cá, porque senão toda a produção que têm era facilmente exportada…Por outro lado, há muitos produtores que vendem a uva por tuta e meia às cooperativas que depois produzem um vinho que vendem a dois euros. Eu quando vejo um vinho a dois euros, penso logo quem poderá ter sido explorado neste processo. Ou somos nós consumidores, que estamos a beber uma ‘zurrapa’ qualquer, ou há um produtor que não foi devidamente compensado pela uva…”
Produtos com histórias
Na Comida Independente, a proposta é que “as pessoas possam consumir coisas boas, bem-feitas, com o mínimo de intervenções, mas que não sejam fundamentalistas”. Alguns dos produtos dispostos nos lineares são biológicos, mas não foi essa a preocupação por trás da escolha. “Esta não é uma loja bio, até porque nas lojas bio eu depois vejo farinhas alemãs…A forma como as pessoas se articulam para fazer chegar a comida aos sítios é muito importante. Porque é que vamos comprar uma coisa biológica que vem do Chile? E sabemos mesmo o que é que está implicado nesta produção? Sabemos que tipo de trabalho está por detrás? Como é que a energia é gerada? Qual é a pegada de carbono que estes transportes deixaram? Não estou a dizer que devemos defender só a produção nacional, até porque faz todo o sentido comermos coisas boas de outros países, mas tem tudo a ver com a forma como distribuímos o nosso consumo”, defende.
Quando falamos de comida ou de produção agrícola, seja ela no vinho, no azeite ou nos hortícolas, estamos a falar também de como as pessoas se organizam socialmente no território.”
Pela Comida Independente têm passado até agora, sobretudo, “entusiastas da gastronomia”, nomeadamente chefs de cozinha, que segundo Rita Santos “são percursores desta filosofia e têm um papel muito importante. Se pensarmos no universo gastronómico, eles são os modelos e quando optam por fazer uma cozinha que expressa as regiões, ou mais simples e com muito foco no produto, as pessoas começam a perceber que há ali uma ideia e vão atrás. E há entusiastas em todos os estratos sociais. Já tivemos aqui executivos a falar com senhoras do bairro de forma muito apaixonada sobre bacalhau e de como fazer um bom bacalhau em casa. É mesmo muito democrático isto da comida, porque podem haver entusiastas em qualquer sítio.”
A alimentação e a forma como compramos o que comemos são encarados pela criadora da nova mercearia lisboeta como processos em mudança. “O que me preocupa é que as pessoas mais informadas e as que estão nos países mais evoluídos e se preocupam com a saúde e o bem-estar comem cada vez melhor, mas ainda existe uma ‘massa’ de pessoas desinformadas que comem cada vez pior. Isso é preocupante. Há projetos muito interessantes que tentam mudar isto, mas acho que devem ser verdadeiramente democráticos.” Rita Santos vê ainda uma tendência para “as pessoas perceberem melhor qual a origem daquilo que comem”, mas não acredita no fim das lojas como intermediários nesta cadeia.
“Há uns tempos tive uma conversa com o Alfredo Cunhal Sendim, da Herdade Freixo do Meio, e uma das coisas que ele advoga é a ideia da produção diretamente para o consumidor. E o que eu já entendi é que esse entrosamento entre o produtor e o consumidor implica uma profundidade tremenda da parte do consumidor que me parece ainda ser uma coisa para um nicho de pessoas que estão de facto muito motivadas. Mas o nosso papel enquanto intermediários também não tem que ser um papel especulativo…Não estamos aqui só para receber uma margem especulativa. Não queremos comprar o mais barato possível e vender o mais caro possível. Eu acho que o intermediário, como é o nosso caso, procura acrescentar valor: na seleção dos produtos, no conhecimento, na promoção, em comunicar os produtos…”
E é também para acrescentar valor que a Comida Independente continuará a trabalhar. Na manga está a organização de alguns eventos que permitam contar as histórias destes ‘pequenos grandes produtores’ a quem as quiser ouvir.
“Vamos contando as histórias de alguns produtores em eventos como provas de vinhos e outros produtos. São momentos para reunir as pessoas e para, de uma forma relaxada e simples, falar dos produtos. E o interessante é que às vezes nas subtilezas de uma prova ficamos mais conscientes do que estamos a provar e isso pode ser interessante. O vinho, de todos os produtos que estão aqui, é talvez aquele que incorpora melhor a expressão de território e é uma coisa mais permanente, que envelhece, que tem um valor de troca muito antigo enquanto produto…Antigamente, quando as pessoas viajavam, o que traziam para oferecer era um vinho, porque é uma coisa que tem um valor muito simbólico na nossa cultura. Precisamos de discorrer um bocadinho mais sobre as histórias.”