O nome técnico é helicicultura, mas na prática trata-se de produção de caracóis. O petisco veraneante de muitos portugueses pode ser um negócio interessante, em especial a caracoleta, cuja dimensão permite rendimento durante todo o ano e com um preço que compensa a sua exploração em cativeiro.
A poucos quilómetros de Lisboa, junto à Aldeia Galega da Merceana, situa-se a Active Garden, que se dedica inteiramente a este molusco com casca. No total, a empresa explora 7000 m2. Porém, a área dedicada às caracoletas abrange 11 “túneis”, cada um com 18 parques. Cada tem à volta de 250 m2. Ou seja, há espaço para a empresa crescer caso venha a ser necessário.
As estufas permitem uma produção contínua. Nos talhões estão plantadas couves e nabos mas, por razões de rigidez da casca, é também ministrada alguma farinha rica em calcário.
Esta dieta tem uma razão. As caracoletas colhidas nos campos têm, por vezes, algum amargor. Por essa razão, as pessoas são levadas a crer na existência de épocas próprias para o seu consumo. A regra é a mesma da das amêijoas: os meses sem “R” – “mas isso não é verdade”, garante Ana Ferreira. A caracoleta “produzida aqui tem o mesmo sabor todo o ano”.
Reprodução dupla
As Helix aspersa maxima são hermafroditas, pelo que é aqui que se coloca a questão da rigidez da casca. Algumas proteções partem-se e assim perdem-se novos animais. Os momentos ocorrem de janeiro a março e de agosto a setembro.
Cada caracoleta põe cerca de 100 ovos, embora o número possa oscilar entre os 80 e os 150, refere Ana Ferreira. O processo reprodutivo é violento, normalmente acontece só uma vez na vida, havendo casos em que se verifica uma segunda vez.
Na Active Garden, os moluscos apenas procriam uma vez. Visto ser um processo violento, as caracoletas ficam exaustas e podem até morrer. “O problema é que a reprodução é muito desgastante, dura cerca de 12 horas, em que as caracoletas estão agarradas uma à outra” – salienta a produtora.
A desova acontece dez dias depois e cada animal gera cerca de 100 ovos. Tratando-se de hermafroditas, um assume o papel do macho. Mas nem sempre assim acontece, é comum que ambos desovem, duplicando a postura. Ana Ferreira explica que, normalmente, é o animal maior que se encarrega de assumir a função de fêmea.
A cópula obriga a um namoro. As caracoletas não se juntam ao primeiro parceiro que encontram. A busca baseia-se hipoteticamente no cálcio da casca. Escolhidos, cravam-se, para que “ninguém” os separe.
Afinal, são mesmo ‘bichinhos irrequietos’
Várias são as piadas acerca dos caracóis e sua velocidade. Porém, a fama é injusta. De acordo com Ana Ferreira, “proporcionalmente andam muito mais depressa do que nós”. E não ficam quietos.
Não querendo entrar em pormenores, visto, pelos vistos, haver segredos industriais, Ana Ferreira tem instalado um sistema de cerca eletrificada para não se escaparem. Ainda assim, encontram-se alguns trânsfugas.
Embora o negócio dê rendimento, poucas são as empresas que atuam com profissionalismo. No entanto, “há centenas” de pessoas com pequenas “explorações”. Ana Ferreira enumera cinco com todos os requisitos. Ao certo não sabe bem quanta gente está no negócio, até porque a atividade “está mal regulada”. Em todos os casos, as caracoletas que se consomem provêm de Portugal, adianta a empresária.
Sendo ou não polivalentes nos tachos, a verdade é que as imperiais exigem caracóis, os da variedade Theba pisana. Se o mercado os pede, por que não criá-los em cativeiro? Responde Ana Ferreira com uma frieza empresarial: os marroquinos são imbatíveis a nível de preço e de condições.
Em Marrocos não há necessidade de cativeiros e a mão de obra mais barata ajuda a recoleção. Outro fator negativo para quem queira criar em cativeiro relaciona-se com a elevada taxa de mortalidade.
Ana Ferreira revela que, em Portugal, há quem crie as Helix aspersa Muller, que têm uma dimensão mais próxima das caracoletas “comuns”. Mais semelhante dos Theba pisana há a Otala lactea, que é um pouco maior que os primos marroquinos.
No entanto, é a Helix aspersa maxima a que se revela rentável. Para que se tenha uma ideia da desproporção de valores, que comprova a inviabilidade económica dos Theba pisana, Ana Ferreira avança com números. Os caracóis saem de Marrocos a 0,5 euros por quilograma e chegam a Portugal a um euro por quilograma (na época alta), sendo o valor dum pires de três a cinco euros. As caracoletas valem três euros o quilograma, aos revendedores. Embora os preços variem de café para café, Ana Ferreira aponta para um preço médio de três euros por pires.
Uma curta esperança de vida
Tratando-se duma exploração empresarial, a rotação da produção tem de ser mais rápida do que na natureza. Na Active Garden, cada caracoleta vive entre os três e os quatro meses. Sem manifestar certeza, Ana Ferreira diz constar que em liberdade podem chegar aos quatro ou cinco anos.
Em termos de custos, o plantio dos hortícolas obriga a um custo de água de 250 m3 por talhão (em média). “No inverno consome-se menos, porque o solo está super-húmido”.
O período da apanha começa ao fim da tarde e alarga-se pela noite, pois as caracoletas são noctívagas. Embora conhecendo o momento do plantio e o ritmo de crescimento do animal, há sempre variantes, pelo que não vai tudo a eito. O sinal da “maturidade” está na “ponta da casca, que dobra para fora”, explica a empresária.
2014 é ano de crescimento
A Active Garden já teve outro proprietário. A vida dá voltas e acabou por deixar o negócio. Porém, Hélder Baptista, quando contactado pela Vida Rural, tem a empresa no coração e não se cansou de elogiar quem toma conta da casa, Ana Ferreira e Daniel Oliveira. Diz que está bem entregue e que “tem tudo bonito de se ver”.
De facto, as hortas e as estufas demonstram grande cuidado. Isso deve-se à paixão com que a empresa foi tomada em 2009. Tudo começou pela paixão do sócio, conta Ana Ferreira. “Na altura o negócio não era muito conhecido”, mas hoje “é mais rentável”, esclarece Ana Ferreira.
A Active Garden arrancou com apenas 2000 m2, para medir o impacto do negócio. Como a situação está de feição, Ana Ferreira fala em um hectare. Se a meteorologia permitir, a ampliação acontecerá em 2014. Atualmente, a Active Garden tem capacidade para abastecer os seus clientes durante todo o ano.
Isto se não surgir uma contrariedade da natureza. O inimigo mais comum é o aranhiço-vermelho, que não tem invadido a exploração. “Há outros, um que faz perder a casca, mas nunca se manifestou em Portugal”. Mais grave é uma ameaça que apareceu em França. Um microrganismo proveniente da Ásia e que para o qual não existe qualquer tratamento – afirma a empresária.
Lagartos e cobras podem também alimentar-se de caracoletas. Há, depois, os inimigos indiretos, os que afetam as couves. E os ratos que são atraídos pelo odor da farinha.
A taxa de mortalidade situa-se entre os 30% e os 40%, sendo que apenas 10% das mortes são causadas por predadores ou outras causas naturais. O maior inimigo da caracoleta é a escassez de água, que causa desidratação.
Quanto custa o nómada?
Ana Ferreira esclarece que não há preços de mercado, a navegação faz-se à vista. Em Espanha há o esboço duma bolsa, mas ao certo não há mercado da mercadoria caracol. Por cá, o valor é inferior entre 50 cêntimos e um euro por quilograma.
Por essa razão, a Active Garden exporta para Espanha cerca de 30% da sua produção. As vendas ao exterior têm um grave problema: o volume. Um contentor cheio de caracóis pesa menos do que se levar açúcar ou café. Todavia, o preço de transporte é o mesmo.
“Não fazemos cargas abaixo das 20 toneladas” – ou seja, a Active Garden leva até onde é viável transportar num pequeno veículo de mercadorias: Espanha.
Este negócio tem também particularidades, nomeadamente de abrangência. Mais a norte é comida que não se coloca na mesa, enquanto no sul é um petisco. Ana Ferreira diz que os consumidores estão a sul de Leiria e mais próximos do litoral.
O custo com a mão de obra não será relevante, uma vez que o trabalho é exercido pelos dois sócios e dois estagiários. A apanha não é mecanizável, o que exige força de músculo.
Tudo o que sabem foi por esforço próprio. “O meu sócio é de engenharia alimentar e nunca, no curso, se falou de caracóis”. Falando com veterinários e zootécnicos, o conhecimento mostra-se igualmente nulo (ou quase), afirma Ana Ferreira.
Como o mercado existe e tem hipóteses de crescer em dimensão e duração, há produtores que não têm tido problemas em divulgar os resultados das suas experiências a potenciais empresários do setor. “O problema é que, por não haver estudos nem conhecimentos, andam a ensinar mal, ensinam coisas sobre um assunto que desconhecem. Andam a ensinar os outros a não saber fazer” – remata Ana Ferreira.
Um negócio com muito por onde andar
Ana Ferreira elogia as boas condições físicas de Portugal para a produção de caracoletas, “sobretudo junto à costa”. Os concorrentes podem ser muitos. França encabeça, Espanha acompanha, mas, como quase toda a Europa (até à central) tem variedades (diferentes), os adversários podem chegar de vários lados.
Podem… se o preço do transporte compensar as exportações. Marrocos é que não tem rival. Aliás, segundo conta Ana Ferreira, os caracóis são oriundos do Norte de África. Terá sido trazido para a Europa, provavelmente, pela aptidão para o petisco.
O ‘caviar’ de caracol
Além de acompanhar a cerveja, o que se pode fazer com a caracoleta? Ana Ferreira, que explora a Active Garden, afirma que o melhor exemplo é o do bacalhau. A criadora garante que tudo o que o Gadus morhua Linnaeus (bacalhau) permite na gastronomia tem o seu equivalente no Helix aspersa maxima (caracoleta).
Além de competir com o “nosso” bacalhau, a produtora recomenda pizza de caracoleta… a feijoada ou o arroz. Uma hipótese a pensar relaciona-se com a alta cozinha… o “caviar”. Os ovos de caracol chegam aos 900 euros por quilograma. Porém, existe o problema da reprodução de que falámos.
Artigo publicado na edição de abril de 2014 da revista VIDA RURAL