A produção animal na União Europeia (UE) é reputada por normas existentes de bem-estar dos animais. A legislação sobre esta matéria na UE tem uma tradição de longa data, tendo a primeira legislação comunitária sido adoptada em 1974. As actuais regras comunitárias na matéria contém as normas mínimas que todos os produtores devem cumprir. Mas nos últimos anos têm surgido projectos que apontam numa nova direcção. Estes projectos centram-se na melhor forma de aplicar a legislação de bem-estar nas explorações pecuárias, de criar sistemas de avaliação do bem-estar animal in loco e de comunicar ao consumidor final que o produto que está a comprar respeita as normas mais elevadas de bem-estar dos animais.
Um dos projectos foi o Welfare Quality (WQ), um dos maiores desta área financiados pela UE (14,6 milhões de euros num total de 17 milhões), que decorreu de 2004 a 2009. Este programa de pesquisa teve como objectivo desenvolver normas europeias para a avaliação do bem-estar na exploração pecuária, de sistemas de informação do produto, bem como estratégias práticas para melhorar o bem-estar animal. As normas para a avaliação foram baseadas na procura do consumidor, nas condições de comercialização dos retalhistas e numa rigorosa validação científica.
A chave é ligar o consumo informado de produtos de origem animal às práticas de criação animal na exploração. O projecto adopta, assim, uma abordagem «do prato ao prato», em vez da ‘tradicional’ «do prado ao prato».
O WQ juntou os pontos de vista de consumidores, indústria, agricultores, cientistas e legisladores para estabelecer quatro princípios essenciais para salvaguardar e melhorar o bem-estar dos animais nas explorações pecuárias: ‘habitação’, alimentação, boa saúde e comportamento adequado.
Centros de Referência e rotulagem de produtos
Chega ao fim este ano o primeiro Plano de Acção Comunitário relativo à Protecção e ao Bem-Estar dos Animais (2006-2010) que definia o rumo que as políticas comunitárias e actividades conexas deveriam tomar nos anos seguintes para continuar a promover normas elevadas de bem-estar dos animais na UE e internacionalmente, ao mesmo passo considerando as oportunidades de negócios que o bem-estar dos animais oferece aos produtores, desde que se respeite a dimensão ética e cultural da questão. A agricultura biológica e os regimes de aplicação voluntária como Label Rouge ou Freedom Food são exemplos indiscutíveis deste tipo de oportunidades. A UE está, por isso, a preparar um novo plano de acção que, a avaliar pelos mais recentes documentos, irá ao encontro da abordagem proposta pelo Welfare Quality.
«Se for melhor, a informação aos consumidores poderá lançar um ciclo virtuoso onde os consumidores criam uma procura de produtos alimentares originários de explorações mais consentâneas com o bem-estar dos animais e essa procura será transmitida através da cadeia de abastecimento ao produtor, que poderá, por sua vez, obter um preço mais elevado pelo seu produto e recuperar uma parte dos custos de produção mais elevados», afirma um relatório da Comissão publicado no final de 2009.
O documento salienta ainda que «uma vez que um maior bem-estar dos animais é muitas vezes sinónimo de uma maior produção, os produtores têm grandes probabilidades de ganhar com o sistema. Efectivamente, o diálogo entre organizações de bem-estar dos animais, autoridades governamentais, políticos, produtores, retalhistas e consumidores pode ajudar a aumentar a sensibilização e induzir melhorias em matéria de práticas agrícolas, liberdade de escolha dos consumidores e legislação».
George Stilwell, professor da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa e investigador na área do bem-estar, mais propriamente sobre a dor e sofrimento em bovinos, conta-nos que «costumo dizer aos meus alunos que o médico veterinário tem de ser o ‘tradutor’ do animal para o produtor, tem de saber ‘ler’ os sinais nos animais e traduzi-los para o agricultor e mostrar-lhes que bem-estar é sinónimo de maior produção».
O professor integrou um grupo de especialistas que elaborou um relatório científico para a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) sobre vacas leiteiras. O relatório do Painel de Saúde e Bem-estar Animal foi publicado em Julho de 2009 e inclui várias recomendações (a serem adoptadas pela UE) para melhorar a saúde e bem-estar destes animais. «A principal aponta no sentido de se repensar a selecção genética que tem vindo a ser feita, no sentido de aumentar a produção de leite, levando a problemas de saúde nos animais e dando mesmo origem a animais pouco sustentáveis em termos biológicos», explica George Stilwell.
Esta recomendação poderá transformar-se numa das muitas medidas do próximo plano de acção da UE em termos de bem-estar animal. Mas todo o focus desta temática está agora inserida nas questões relacionadas com a cadeia e a segurança alimentar. Pelo que as opções de rotulagem relativa ao bem-estar dos animais que estão a ser estudadas são fundamentais.
«Os resultados do estudo de viabilidade mostram que rotular em matéria de bem-estar dos animais pode aumentar a sensibilização dos consumidores e acelerar a penetração no mercado de produtos respeitadores do bem-estar dos animais que ultrapassam o mínimo previsto na legislação europeia», defende o mesmo relatório da Comissão.
Paralelamente há então que implementar uma forma de gerir e desenvolver de forma concertada em toda a União os sistemas de protecção e bem-estar animal. Segundo o referido relatório, «a opção preferida, uma Rede Europeia de Centros de Referência (ENRC) de assistência técnica ao desenvolvimento e implementação de políticas de bem-estar dos animais, incluindo certificação e rotulagem, deveria ser centralizada num instituto de coordenação em cooperação com as entidades de investigação pertinentes dos Estados-Membros reconhecidas pela Comunidade».
Portugal já tem formadores de Técnicos de Bem-estar Animal
A legislação europeia de bem-estar nos animais de produção divide-se em três partes: ‘habitação’ (condições em que os animais vivem), transporte e abate.
Dentro destas três áreas há depois legislação específica para algumas espécies (vitelos de carne, galinhas poedeiras, frangos de carne, suínos, etc.). Todos os responsáveis e entidades com quem falámos reconhecem que muitas melhorias têm sido conseguidas nos últimos anos mas organizações, como o Europgroup for Animals, salientam que «há e haverá sempre muito a fazer», a directora, Sonja Van Tichelen.
Neste momento, aguardam-se algumas modificações, nomeadamente à lei de transporte, que já limita o número de animais e obriga à certificação dos motoristas. «Mas queremos que se defina um tempo limite de viagem, por exemplo», explica Sonja Van Tichelen, acrescentando que «falta também legislação específica de bem-estar em relação a bovinos de carne e de leite, peixes (aquacultura), etc.».
Por seu lado, Albertina Vasconcelos, responsável pela Divisão de Bem-estar da Direcção-Geral de Veterinária, salienta que «as mais recentes directivas comunitárias em termos de bem-estar dizem respeito aos frangos de carne, que terá de ser transposta até Julho deste ano, a respeitante à eliminação das gaiolas nas galinhas poedeiras, até 2012, e a alteração de várias regras e condições nos matadouros, até Janeiro de 2013».
«A fiscalização até à saída do matadouro cabe à DGV, depois à ASAE, mas a responsabilidade pelo bem-estar animal é sempre do produtor. No entanto, a legislação acaba por ser mais ‘dirigida’ aos médicos veterinários que são os consultores e que, cada vez mais, têm um papel interventivo». Das novas regras nos matadouros, faz parte a obrigatoriedade de ter um Técnico de Bem-estar Animal e, aqui, Portugal está bem à frente dos restantes países europeus.
Por iniciativa da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (FMV da ULHT), decorreu, entre Setembro de 2008 e Março de 2010, a Pós-Graduação em Bem-estar no Abate de Suínos e Bovinos. Agora «estamos na fase de ‘fazer o desenho’ e acreditar o curso e depois o grande objectivo passa por, a partir deste curso inicial, criar uma rede de formação no País, para os responsáveis de bem-estar, abegões e magarefes», explica Gonçalo Pereira, professor de Comportamento, Bem-estar e Protecção animal da FMV da ULHT.
Este curso de formação de formadores, que teve o apoio da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) e foi ministrado por Paul Whittington, director do Animal Welfare Training. «O principal motor do bem-estar nos animais de produção não é a obrigatoriedade de ter esta ou aquela prática, ou seja, não é a legislação, mas sim a pressão dos retalhistas, impulsionada pela procura dos consumidores». Isso aconteceu já no Reino Unido, levando à criação da etiqueta Freedom Food e «quando os retalhistas europeus começarem a ‘obrigar’ a que os seus fornecedores respeitem o bem-estar animal, os produtores vão rapidamente perceber que é uma mais-valia para os seus produtos», garante este especialista. •
Artigo em colaboração com a revista Veterinária Actual.