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Entrevista: O caminho é investir em cereais de valor acrescentado

Entrevista: O caminho é investir em cereais de valor acrescentado

O recente estudo de oportunidades de valorização da produção foi o pretexto para falar com Bernardo Albino e Pedro Atalaya, da ANPOC, sobre a importância de trabalhar nas cadeias de valor nos cereais.

O levantamento de oportunidades revela um enorme potencial para a produção de cereais. A pergunta que todos fazem é: se há necessidade destas matérias-primas e capacidade para produzir, porque é que não produzimos mais e a produção continua a descer?

Bernardo Albino: Havia uma série de falhas que o estudo veio ajudar a esclarecer. Existem três agentes: os produtores, a indústria e o poder político. Havia falhas nos três lados, e este trabalho permite-nos identificar essas falhas do lado da produção, caso de problemas de dimensão de lotes, por exemplo…

Só dimensão, homogeneidade não?

BA: Sim, dimensão e homogeneidade. Do lado da indústria tínhamos problemas de contacto, existia muito desconhecimento e assim passam a conhecer a realidade.

E a nível do poder político há coisas interessantíssimas. Muitas destas culturas permitem uma rentabilização de fatores do investimento em condições muito pouco intensivas, em que a alternativa em muitos casos é o abandono. Não são culturas sexy, porque os euros que libertam por hectare não são muito interessantes, porém a rentabilidade dos capitais investidos pode ser interessante.

Pedro Atalaya: E há também a questão da integração no sistema de produção, com as vacas, as ovelhas…

BA: A ideia é esta, se gastamos 400€ a fazer um btp [designação usada para cereais com baixo teor de pesticidas] e vamos buscar 600€, temos 50% de rentabilidade de capitais investidos, ficamos com 200€. O problema é que, hoje em dia, com as rendas inflacionadas os 200€ podem não chegar e precisamos de libertar mais dinheiro. E isso atira os produtores muitas vezes para culturas que libertam mais euros, mas na realidade também investem muito mais dinheiro para os libertar. É quase errado do ponto de vista meramente económico, e por isso alertamos para o facto de não se poder olhar exclusivamente para os euros libertados por hectare, porque temos de analisar aquilo que se investiu.

Mas quando olhamos para estas oportunidades, que são muitas, o que é que está a falhar? É a concentração da produção, a falta de uma organização de produtores forte, com força, escala, massa crítica para negociar com a indústria…

BA: É isso tudo. Mas vamos com calma, porque uma coisa é aquilo que a indústria diz querer e a outra é o preço que apresentam. É por isso que digo que existem melhorias a fazer nestes três agentes, mas a base para isto crescer está cá, existe.

Então o que é que é necessário fazer do lado da produção?

BA: Temos de concentrar a produção, aumentar a dimensão de lotes e ­homogeneizá-los.

Um trabalho como se fez na cevada dística?

PA: Completamente. Estamos a fazer isso nos trigos de qualidade e a recomendar variedades.

BA: Temos um projeto na ANPOC, não gosto de lhe chamar projeto porque parece logo que é financiado… [risos], mas é uma lista de variedades recomendadas para trigos de qualidade que, reafirmo, tem zero de investimento público.

PA: Agarrámos na indústria, na produção e nos produtores de sementes e juntámo-los para chegarmos a uma lista de variedades mais favoráveis para a produção e indústria.

Variedades para regadio ou sequeiro?

PA: Aqui o que interessa é a qualidade, seja em sequeiro ou regadio.

BA: Analisámos sete fileiras mais uma [ver reportagem detalhada sobre estudo nas páginas seguintes]. Estamos a falar de volumes que não são gigantescos em termos de toneladas, mas muito importantes em termos de euros, porque são cereais de maior valor acrescentado. Cerca de 20 a 60% mais valorizados que o cereal convencional. Uma cevada dística pode valer mais 60% que uma cevada hexástica. O trigo melhorador este ano andou nos 280/290€, enquanto que o trigo corrente cotou nos 205/210€.

PA: E o btp a 240€.

BA: Como lhe dizia, em termos de quantidades não produzimos muito, mas se convertermos em euros estamos a falar de um ganho potencial de 425 milhões de euros.

É esse o caminho, a criação de valor, para não concorrer como commodity

BA: O valor só se ganha na horizontal ou na vertical. Na horizontal fazendo lotes de milhares de toneladas, mas nunca como commodity, porque até podemos ter rios de cereais que os franceses vão ter sempre oceanos, não vale a pena.

Olhando para estes segmentos, trigos melhoradores, btp, trigo duro, cevada dística, girassol, proteaginosas, onde é que vê maior potencial? Há alguma razão, por exemplo, para não produzirmos mais proteaginosas?

PA: Há uma razão técnica que é uma razão edáfica, o tipo de solos.

BA: Mais do que isso, há uma razão política, porque no acordo da OMC ficou decidido que a produção de proteaginosas e oleaginosas seria feita na América. E a Europa deixou de ter proteaginosas, estão todas lá, mas na América a proteína vegetal tem OGM, e cá não autorizamos a produção. Por isso estamos a importar proteína vegetal OGM que não podemos produzir. Não estamos sozinhos nos 14% [percentagem da produção nacional de proteaginosas face à procura] a Europa está toda assim, ultradeficitária. Foi uma questão política e agora para isto mexer vai dar muito mais trabalho. As proteaginosas são um bom exemplo de onde não queremos ir parar. Perde-se know-how, perde-se estrutura produtiva, perde-se gente, perde-se tudo. Perante isto tudo porque é que continuamos a descer, somos malucos? Fizemos um trabalho espetacular, uma análise swot de produtos agrícolas exclusivamente do ponto de vista agronómico e edafoclimático. E daí tirámos logo uma série de produtos. Voltámos a fazer a mesma análise swot já com a componente mercado e aí retirámos a fileira da bioenergia, porque concluímos que não era esse o caminho. Como é óbvio daqui a três anos este estudo poderá estar completamente desatualizado mas, face às condições atuais, ao que nós sabemos hoje, é essa a opção. Há potencial nestes produtos, não são análises idílicas, há muito para crescer. Temos de ver produto a produto, o trigo melhorador tem claramente potencial para regadios competitivos, os btp tem claramente potencial para sequeiros competitivos…

O que é que chamam de sequeiros competitivos?

BA: Um sequeiro que consegue com facilidade chegar a médias de 2 t/ha. Sequeiros em terras delgadas, com 5 cm de terra e depois pedra, não servem para isto.

Ou seja, escolher os solos…

BA: Sim, isto não pode ser ‘a varrer’…

O trigo duro teve uma quebra brutal com o desaparecimento da ajuda ligada. Temos capacidade para subir este número sem ajudas?

BA: Absolutamente. Mas lá está, os três atores que estávamos a falar vão sempre estar juntos. O trigo duro vai ser uma cultura em que claramente o poder político vai ter um peso mais importante, porque a Europa está a produzir cada vez menos trigo duro.

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Os três grandes produtores mundiais são o Canadá, os EUA e o México. E o Canadá estava dominado até ao ano passado por uma EPAC… A Europa ainda consome 37 milhões de toneladas anuais, não é brincadeira…

PA: Mas existem zonas muito específicas para produzir trigo duro em termos de solos…

Mas por ter essa especificidade, temos condições para aumentar muito a produção?

BA: Acho que temos possibilidade para aumentar para 30 ou 40 000 t sem dificuldade. A área que a cevada dística ganhou podia ser perfeitamente de trigo duro, mas lá está, neste a caso a indústria do trigo duro não se mexeu e a cevada e o milho ultrapassaram o trigo duro. Temos bons exemplos em tudo, a cevada dística é um bom exemplo de indústria, concentrou produção. Em 2003 produziam-se 500 t de cevada dística em Portugal, em 2013 foram 40 000.

Temos também os trigos melhoradores, temos algumas associadas nossas que começaram a investir nestes trigos, começaram a investir na parte analítica à entrada das instalações.

PA: Para fazer os tais lotes homogéneos que aqui, nos trigos melhoradores, é um fator muito mais importante.

BA: À entrada do silo só se consegue analisar de forma imediata o peso específico e a proteína, mas se fizermos um trabalho prévio de variedades é vantajoso, porque há variedades que são tendencialmente melhores em determinadas características e assim é possível separá-las à entrada do silo.

Com exceção da cevada dística, alguma destas culturas está contratualizada na relação com a indústria?

PA: Os btp tem alguma contratação porque têm análises ao longo da cultura. Pelo menos há uma ou duas visitas da parte técnica, para ver se há resíduos, porque a única coisa que se pode usar nos btp são herbicidas.

A indústria pode pagar preços economicamente interessantes ao produtor sem perder competitividade?

BA: É preciso perceber que nenhum destes cereais tem um valor acrescentado em Portugal em relação ao mercado mundial. Há disto em todo o lado…

PA: Só nos btp é que poderemos ter alguma vantagem…

E a vantagem do abastecimento de proximidade? Também é um custo…

Claro, não podemos pegar nisto só numa lógica de preço. Temos de deixar cair aquela ideia de que ‘se é português é mais caro, têm de nos pagar mais’… o consumidor também não paga mais por ser português. A farinha produzida com trigo português não pode ser mais cara senão o consumidor não paga e por isso a indústria também não pode pagar mais. Preferir português está certo, mas se custar o dobro fica na prateleira. Há vantagens de um lado e do outro que não se traduzem só em preço, vantagens de estabilidade contratual desde logo. Há três coisas que para a indústria são boas: a rastreabilidade, saber o que estão a comprar, conhecer os campos, etc. Depois a humidade baixa, porque aqui sabem que estão a comprar mesmo só ce­real, não há água. A nível internacional o cereal sai com 13% de humidade e o nosso sai com 10%, e este ano houve cereal com 8%. É menos 5% de água que estão a comprar. E há ainda o fator da saúde pública, a questão das microtoxinas. Os cereais praganosos em Portugal tipicamente entram em rotações menos intensivas, não há registos de cereal português com microtoxinas, e isso é um descanso para os agentes da fileira. E tudo isso pode acrescentar um pouco de valor ao cereal, pode não ser em euros por tonelada, mas ser a vantagem de ter um contrato a três ou quatro anos, que dá estabilidade a toda a gente.

Identificadas estas oportunidades, o que é que se segue?

BA: Este trabalho é da ANPOC para a ANPOC, é uma radiografia. Agora com isto as associadas vão ter de vestir a ‘carapuça’ e compreender para cada uma destas fileiras aquilo que pode fazer sentido e onde é que estão as oportunidades. Porque agora seguem-se decisões estratégicas e comerciais. Naturalmente que a ANPOC poderá, e irá, trabalhar nesse sentido, mas cada um terá de usar a informação para trabalhar no melhor caminho.

Vai existir algum trabalho junto da indústria? Quando olhamos para quem compra são cinco ou seis nomes, não mais…

Está a ser preparado, ainda não é claro. Se para cada uma das fileiras houver interesse de toda a cadeia de valor então aí sim, a ANPOC pode dinamizar um trabalho de fileira estratégica. Isto é o mais macro possível, a partir de agora é preciso digerir estes resultados para cada fileira concreta e pensar o que faz mais sentido. Temos bons indicadores, já fomos convocados para uma reunião na Nestlé sobre btp, e isso já é um reflexo deste trabalho.

A indústria de alimentação animal ficou à parte. Porquê?

BA: Este estudo foi mais focado na qualidade, mas não podemos esquecer a realidade edafoclimática que temos, que limita a produção de cereais de qualidade para consumo humano. Por outro lado, não podemos esquecer a realidade das nossas explorações agrícolas, muitas são mistas.

PA: E nesse sentido, produzir cereal forrageiro para alimentação animal na própria exploração é muito importante, é mais rentável do que comprar no mercado.

A indústria da alimentação animal deve ser considerada um recurso potencial, porque as fábricas de rações compram garantidamente aos oceanos, não compram aos rios, como dizia o Bernardo há pouco. Não estão interessados na qualidade, querem quantidade e preço.

O girassol teve um estímulo grande na altura do advento dos biocombustíveis, depois os produtores voltaram a desinteressar-se.

PA: Caiu tudo porque veio o milho para substituir.

Ainda é uma cultura interessante?

PA: Hoje em dia voltou a ser por causa dos preços e é aquela em que temos maior necessidade por causa dos óleos.

BA: Mas é commodity pura. Neste estudo analisámos o girassol porque em Portugal há capacidade industrial e há vontade de trabalhar connosco, mas pessoalmente acho que é uma cultura em que teremos sempre dificuldade. Em termos de qualidade não há grande diferenciação, ou seja não há criação de valor. Temos um exemplo interessante de aumento de produtividade de girassol, em Jerez, Espanha, mas eles têm um fotoperíodo maior que o nosso, começam a semear logo em janeiro, é diferente, conseguem com facilidade produtividades de 2,5 t e nós cá, a trabalhar bem, produzimos uma tonelada.

Houve alguma surpresa neste estudo?

BA: Para mim houve uma surpresa em termos de valor, não pensei que tivesse tanta importância económica, no potencial. Outra coisa que não tinha noção é da importância do ganho na balança comercial. Porque incorpora tudo produto nacional, os cereais são feitos cá, com produtos de cá, com trabalhadores de cá e pagam impostos cá.

O que é urgente fazer rapidamente daqui para a frente?

BA: Temos de fazer um brainstorming sobre isto, analisar, refletir, agora já há bases para investir. Vamos começar a trabalhar no aumento da capacidade produtiva para fomentar a produção, passar esta mensagem da substituição das culturas de baixo valor acrescentado por culturas de valor. Outra questão importante é a análise de rotação, é preciso pensar numa lógica de ciclo, de 3-4 anos e trabalhar melhor nas cadeias de valor.