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Pecuária biológica

Pecuária biológica tem vindo a aumentar

ovelhas agricultura biológica

Produzir em modo biológico é mais caro, mas pode ser compensador por via do preço. Esta pecuária tem maiores exigências, mas tem vindo a aumentar. Três testemunhos enquadram um negócio em desenvolvimento.

A criação de gado em regime biológico não significa nem maior rendimento, nem maiores ganhos. Graça Archer, veterinária em Évora, conta que tudo se resume a fazer contas no final do dia. Se o modo de produção convencional pode significar menos custos por animal e maior rendimento em produto, o produzido em modo biológico pode beneficiar de comércio dirigido a consumidores com sintonia ética e filosófica com os criadores – ou mais simplesmente: têm de estar dispostos a pagar mais. Mais caro? Talvez não… Alfredo Cunhal Sendim, produtor de Montemor-o-Novo, garante que “na realidade é muito mais barato, mas a nossa economia mascara esta realidade”. Luís Coutinho, produtor de Vila Velha de Ródão, não perfilha da opinião em termos económicos. “De uma forma direta diria que sim, porque os fatores de produção são, em geral, mais caros e as produções são, muitas vezes, mais baixas que no convencional. Contudo, se pensarmos nos efeitos prejudiciais causados pela agricultura convencional, quer em termos ambientais, quer de saúde pública, digo claramente que não”. Já José Carlos Inácio garante que a produção biológica é mais cara. Quanto ao consumidor diz que “não valoriza. O pequeno nicho que existe é vegetariano”.

“O mercado dos produtos biológicos tem vindo a crescer e as nossas vendas têm crescido de forma sustentada. O preço do produto BIO é cada vez menos elevado relativamente ao produto convencional” – afirma Luís Coutinho. Para cada espécie existe um número máximo, estabelecido por lei, de animais por hectare. Mas mais do que um número de cabeças, o que importa para fazer contas é que um animal não implique mais do que 170 kg de azoto por ano por hectare. A produção pecuária biológica obriga a uma gestão das pastagens. Se tal é fácil onde as explorações têm uma dimensão média ou grande, no minifúndio as coisas podem complicar-se. Graça Archer desmonta o problema, pois pode-se juntar a criação animal com a agrícola.

“Mas isto é um teto”, refere Graça Archer, que adianta que mesmo os encabeçamentos de gado explorados em regime não biológico têm um impacto bem longe do teto que se exige para os biológicos. A razão é simples e relaciona-se com a disponibilidade de alimentos. Este modo de exploração pecuária implica, além de alimentos produzidos em regime de agricultura biológica, que os animais tenham sempre acesso a pastagens. Já os animais que estejam na fase de engorda, ainda que não andem pelo campo, têm de ter parque para exercício.

Quando o produtor entender aumentar o seu efetivo, e não dispondo de animais criados em regime biológico, pode recorrer a animais de criação comum, mas terá sempre de os ter num período de transição: 12 meses para equídeos e bovinos; seis meses para pequenos ruminantes, suínos e animais para a produção de leite; 10 semanas para as aves de capoeira destinadas à produção de carne, introduzidas com menos de três dias; seis semanas para as aves de capoeira destinadas à produção de ovos. Existem também limitações quanto à percentagem que representará a introdução de animais oriundos de explorações onde não há produção biológica. Graça Archer refere que têm de ficar abaixo dos 10%. Todavia, em casos de raças autóctones ou em vias de extinção, a percentagem passa para 40%.

Em termos alimentares existem também regras para o desmame. A lei estabelece que se deve dar preferência ao leite materno, num período mínimo de três meses para os bovinos e dos equídeos; de 45 dias para ovinos e caprinos e 40 dias para suínos. Em termos alimentares, as forragens grosseiras, frescas, secas ou ensiladas têm de constituir pelo menos 60% da matéria seca de ingestão. No caso dos animais produtores de leite pode reduzir-se para 50%, durante um período máximo de três meses, no início da lactação. Aos suínos e aves de capoeira têm de ser adicionadas diariamente forragens grosseiras, frescas, secas ou ensiladas. Os animais não poderão estar com anemia e é proibida a alimentação forçada. Por vezes há também derrogações, explica Graça Archer, que indica o ano de 2012, em que se verificou um período de seca, pelo que se pode fornecer alimentação convencional – contudo, esses casos são estabelecidos conforme a situação pelo Ministério da Agricultura.

A prática biológica impõe que a pecuária respeite as necessidades fisiológicas e comportamentais dos animais, com bons alojamentos, higiene e que mesmo os estabulados tenham acesso a espaços ao ar livre. No caso das aves tem de se lhes permitir debicar, esgravatar e procurar alimentos no chão, além de banhos de areia. A engorda é uma das maiores diferenças, pois enquanto no modo convencional existe um período de estabulamento, no biológico exige-se parque de recreio ao ar livre para que possa fazer exercício. Obviamente, o fornecimento de hormonas ou esteroides não são consentidos. A sincronização dos cios está também interdita.

"Tudo na produção biológica é orientado para a promoção da saúde e bem-estar animal", revela Graça Archer

“Tudo na produção biológica é orientado para a promoção da saúde e bem-estar animal”, revela Graça Archer

Diferenças de prática veterinária

Graça Archer exerce medicina veterinária nos modelos de cultivo biológico e no corrente e refere que as diferenças estão nas abordagens: uma voltada para o “indivíduo” e outra para o tratamento da doença. “Tudo na produção biológica é orientado para a promoção da saúde e bem-estar animal”, enquanto o convencional está mais centrado na cura das doenças. Em termos de doenças é suposto os animais criados em modo biológico serem menos atreitos a doenças, mas elas aparecem, refere Graça Archer.

Em termos de bem-estar animal, a legislação europeia, transposta para direito nacional, não distingue os criados em regime biológico ou convencional. Num animal criado em modo biológico é dada prioridade a tratamentos homeopáticos e fitofarmacêuticos que tenham plantas por base. No caso de estes não resultarem, ou que seja previsível a não adequação, o princípio do respeito pelo bem-estar animal permite o uso de produtos alopáticos. O número de tratamentos permitidos está também fixado para cada realidade. “O papel do veterinário é o de se juntar ao produtor para planear estratégias. Quando vou a uma exploração não vou só tratar uma doença ou um animal com um problema, mas de todo o sistema. Isso exige uma maior presença”. A prática médica junto de efetivos biológicos é mais exigente, reconhece Graça Archer, que refere ainda não existir, por parte das instituições de ensino superior, qualquer abordagem a esta realidade. A desparasitagem deve estar associada a um plano de pastoreio que minimize a carga de parasitas, ao nível das pastagens. Em termos de saúde, transporte e bem-estar animal não existem diferenças entre o convencional e o biológico. Já quanto ao abate, este não pode decorrer em simultâneo com gado de produção convencional.

O mistério das estatísticas

A pecuária explorada em modo biológico tem vindo a aumentar consistentemente. Todavia não é uma certeza absoluta, visto diferentes organismos do Ministério da Agricultura se atropelarem entre quem tinha as estatísticas e quem as guarda atualmente. Em teoria existem dados até 2011. Porém, o documento estatístico da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), disponibilizado no sítio de internet, corresponde a 1994. Ainda assim, apenas se fica a saber a área das pastagens em regime biológico. Num outro documento da DGADR (que não está disponível no sítio da internet) consegue-se depreender a evolução através das pastagens. Já o Instituto Nacional de Estatística (INE) tem dados precisos. Assim, nesse ano estavam registadas 32 133 explorações de bovinos, 5786 de suínos, 64 412 de ovinos, 3469 de caprinos, 41 235 de aves, 1957 de colmeias e cortiços, e 387 de outras espécies, onde se incluem cavalos e coelhos.

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Dados compilados pelo Gabinete de Planeamento e Políticas mostram que o efetivo bovino tem-se mantido com poucas oscilações entre 2007 e 2009. Já o dos suínos registou uma quebra para menos de metade em 2009. O dos caprinos teve pouca oscilação e o dos ovinos registou uma perda acentuada em 2009. O dos equídeos pouco flutuou e o das aves conheceu uma subida em 2009. Já o da apicultura quase triplicou entre 2007 e 2009. Em termos de pastagens, a evolução das áreas é impressionante: dos 766 hectares em 1994 até 108 057 hectares em 2009. A área afeta em 2009 representou, porém, o primeiro recuo, visto em 2008 ser de 152 947 hectares.

A Herdade do Freixo do Meio

Alfredo Cunhal Sendim é um agricultor e produtor pecuário dos mais conhecidos no país, facto a que não é estranho o pioneirismo em Portugal. Nascido numa família de lavradores de Montemor-o-Novo, começou a trabalhar em 1990, mas só sete anos mais tarde enveredou pelo modelo biológico, sendo que agora, na parte agrícola, está em biodinâmico. Primeiramente, a opção biológica deveu-se à vontade de produzir alimentos diferenciados. Todavia, atualmente fá-lo por opção filosófica. Por via familiar não teve de adquirir terra. A Herdade do Freixo-do-Meio, com 440 hectares, acolhe 30 vacas barrosãs (embora não seja uma raça alentejana, tem-se dado bem no Sul), 300 ovelhas merinas, 300 porcos de raça alentejana, 1500 perus pretos, 300 frangos e 100 galinhas, de raças portuguesas. As vacas, cabras e ovelhas alimentam-se apenas de forragens espontâneas. Os porcos são alimentados a cereais, bolota, bagaço de azeitona, hortícolas e em pastagens. As aves vivem ao ar livre e têm acolhimento em galinheiros. Já os mamíferos têm áreas mais vastas. Animais mais livres podem estar mais a jeito de predadores. Contudo, Alfredo Cunhal Sendim afirma que as perdas são inferiores a 1%. Como mais vale prevenir, para enfrentar anos adversos Alfredo Cunhal Sendim tem em stock feno para dois anos e mantém “relações sólidas com fornecedores” – diz ainda não ser difícil obter alimentos biológicos para os animais. Anualmente adquire 100 toneladas de cereais e duas toneladas de farinha de peixe, que é ministrada às aves.

Alfredo Cunhal Sendim defende que a produção biológica é mais barata, mas "a economia mascara a realidade"

Alfredo Cunhal Sendim defende que a produção biológica é mais barata, mas “a economia mascara a realidade”

A atividade de Alfredo Cunhal Sendim enquadra-se, voluntariamente ou coincidentemente, com o princípio do “quilómetro zero”, pois 90% das vendas (produtos com marca própria, nome da herdade) são feitas na loja da propriedade. Alfredo Cunhal Sendim não sente preconceitos por parte das autoridades públicas com quem tem de lidar. O modo de produção biológico está bem entendido e não levanta preocupações.

Herdade da Tapada da Tojeira

Luís Coutinho iniciou-se na vida do campo em 1989, “com um projeto de jovem agricultor embora tenha estado, desde sempre, ligado à agricultura porque era necessário colaborar com a família na gestão da casa agrícola”. Até essa data fazia agricultura de fim de semana, pois todos trabalhavam e residiam em Lisboa. Nos primeiros anos partilhou a agricultura com outras atividades e só em 1993 se vestiu inteiramente de rural. A Herdade da Tapada da Tojeira, com 300 hectares, situa-se em Vila Velha de Ródão e está na posse da família de Luís Coutinho desde 1900.

Em 1994 iniciou a conversão para o modo biológico, sendo um dos pioneiros na Beira Baixa. Hoje converteu a propriedade ao regime biodinâmico. “É a forma mais correta de agricultar por ter impactos muito menores no meio ambiente, além de permitir obter produtos de melhor qualidade, isentos de resíduos de produtos químicos de síntese, como adubos ou pesticidas. Além disso, a agricultura biológica promove a fertilidade dos solos, preserva a biodiversidade e não permite a utilização de organismos geneticamente modificados, entre muitas outras vantagens”. Em termos pecuários tem um rebanho de 300 ovelhas. “Neste momento temos muito poucas aves, mas é uma área que pretendo dinamizar logo que haja condições para o efeito”. Luís Coutinho vende as carcaças diretamente a lojas de produtos biológicos com talho e a venda de animais vivos é feita a comerciantes que a colocam no circuito convencional.

Herdade da Tapada da Tojeira

Herdade da Tapada da Tojeira

Problemas de saúde não têm batido à porta da Herdade da Tapada da Tojeira. “São feitos os tratamentos do plano nacional veterinário. Temos há vários anos a classificação B4, a melhor em termos de sanidade animal. Felizmente não temos tido problemas de saúde no rebanho”. A base de alimentação do rebanho “é o pastoreio direto, complementado com palha e feno próprio”. Anos adversos não lhe têm colocado problemas de obtenção de alimentos, sendo que a propriedade é autossuficiente em termos alimentares. A depredação natural não é muito preocupante, piores são os humanos. “Por vezes há ataques de cães assilvestrados quando as ovelhas estão a pastar nos parques. Houve anos em que foram mortos dezenas de animais pelos cães, o que se traduziu em grande prejuízo. Os roubos também são sempre uma preocupação: já este ano nos roubaram 15 ovelhas merinas e 25 borregos. Guardamos todos os anos entre 40 a 50 borregas para renovar ou aumentar o efetivo”.

E pior do que os predadores e ladrões, diz Luís Coutinho, “é o Ministério da Agricultura que, após tantos anos a gerir a aplicação dos apoios comunitários, continua com critérios de controlo completamente desajustados, além da conhecida teia burocrática, que levam a que sejam aplicadas penalizações sobre os produtores, indevidamente. Um simples exemplo é a obrigação de colocar chips de 80 g em borregas, por decreto, entre os seis e os nove meses, o que é um atentado ao bem-estar animal, ainda mais evidente nas raças pequenas e em que nem a declaração do médico veterinário é tida em conta pelos ‘ilustres’ dos gabinetes da tutela”. Ainda que exista burocracia há apoios públicos para o modo de produção biológico, mas Luís Coutinho diz que não é fácil: “O único apoio que tem existido para o modo de produção biológico são as medidas agroambientais da PAC. E mesmo estas, embora pagas quase a 100% pela Comunidade Europeia, são muitas vezes de difícil recebimento para os agricultores portugueses devido ao modo de funcionamento e às complicações ou confusões criadas pelo IFAP”.

Herdade do Moinho Novo

José Carlos Inácio tem uma atividade mais vasta do que os colegas de Montemor-o-Novo e Vila Velha de Ródão. Na sua Herdade do Moinho Novo, de 58 hectares, cria bovinos, que representam 40% da faturação. Explora ainda um hotel para cães, campo de férias e agroturismo. Quando terminou os estudos, José Carlos Inácio saiu de Lisboa e iniciou a atividade rural em 1997, com a criação de avestruzes. Em 2000 passou a criar bovinos e em 2004 fez a transição para o modo biológico, por “maneira de estar”. Os bovinos são o negócio e o resto é ‘hobby’, diz este produtor de Canha (Montijo). As galinhas são “meia dúzia” e quem sofre com predadores naturais. “Fico triste e depois arranjo outros para substituir. Não faço mal a raposas nem saca-rabos”. No total, José Carlos Inácio tem 57 vacas reprodutoras, fazendo uma rotação de 14 anos. Vende os vitelos ao desmame a engordadores convencionais. Os bovinos são todos da raça Limousine, por ser “a mais comercial”, alimentados apenas em pastagens. Os anos climatologicamente adversos não o obrigam a maiores cuidados, mas forçam-no a comprar alimentos. Este produtor afirma não ser fácil conseguir alimentos de agricultura biológica para os animais.

Artigo em colaboração com a revista VETERINÁRIA ATUAL e publicado na edição de setembro de 2014 da revista VIDA RURAL