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Os novos cervejeiros

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A cerveja artesanal está na moda. Uma moda entre aspas, pois o somatório da produção de todas nem arranha a menor das cervejeiras industriais. Do Minho ao Alentejo, fazem-se microproduções, que alargam a oferta da bebida preferida de muitos portugueses.

É um pequeníssimo universo, mas repleto de pequenas estrelas. A ENOVITIS identificou 60, número obtido por levantamento no site da Cerveja Artesanal Portuguesa. Entre o início do levantamento e o fecho da edição, nasceram e morreram projetos. Como base de trabalho, foram contactadas todas as 53 apuradas à data. A maioria acabou por não dar sinal de vida – o que traduz a dimensão e o amadorismo existente na atividade. Apenas nove deram sinal e responderam, além do próprio portal Cerveja Artesanal Portuguesa.

Os novos ‘cervejeiros’

A produção somada das cervejeiras artesanais é de cerca de 200 000 litros – menos de 0,3% do total fabricado em Portugal. As razões que justificam o início do negócio são três: prazer pessoal, insatisfação com a qualidade das cervejas industriais e oferta pouco diversificada.

A cerveja Bordallo tem o seu berço no concelho das Caldas da Rainha e nasceu como ideia no final de 2012, “quando um grupo de amigos, insatisfeito com a homogeneidade das cervejas que conseguiam encontrar na região, e com a curiosidade e espírito crítico para entrar numa nova aventura, começou a produzir a sua própria cerveja”, adianta Paulo Bastos.

Nélson Miranda, da 5 e Meio (Póvoa da Galega – Mafra), justifica a sintonia do gosto, dos atuais sócios, para motivo de arranque. “A vontade de arriscar numa atividade que não conhecíamos, mas que tínhamos muita vontade em pôr em prática. Acima de tudo, ambicionávamos ver o resultado final e poder beber uma cerveja produzida por nós”.

A família de Maria Camila Begonha já há vários anos que tinha o hobby da produção de cerveja. “Depois do mestre cervejeiro fazer cerveja em casa há vários anos, decidimos que poderíamos transformar um hobby num negócio”. A cerveja Bolina (Azambuja) levou algum tempo a nascer. “A ideia surgiu em 2012 e obtivemos as licenças em março de 2014” – revela Maria Camila Begonha.

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A Arrábida Beer Company (Sesimbra) teve um longo período de gestação. Valentina Resel informa: “a ideia surgiu há cerca de 30 anos, na mente do nosso mestre cervejeiro, visto que para ele não existia nenhuma cerveja com a qual se identificasse”. Foi recentemente, no ano 2013, que pôs esta ideia em prática, para assim produzir uma seleção de cervejas gourmet artesanais.

O produtor de Sesimbra foi impulsionado pelo vazio de oferta existente. “Esta ideia avançou visto o vazio no mercado das cervejas artesanais, na qual decidimos explorar, sem qualquer tipo de fim lucrativo, para conhecer melhor como é o processo de produção das cervejas. Depois de um ano de experimentação, decidimos investir neste segmento, pois não existia grande variedade de produtos” – adianta Valentina Resel.

Quem faz cerveja, fá-la por gosto

Scott Steffens, engenheiro de software, fez a sua primeira cerveja caseira na década de 90. É um aficionado da cerveja artesanal, desde então. Susana Cascais fez a sua carreira em marketing e publicidade, nos Estados Unidos, tendo trabalhado durante vários anos com uma cervejeira artesanal de larga escala. O casal Susana Cascais e Scott Steffens mudou-se de Seattle para Lisboa no final de 2012. Vinham habituados à variedade e quantidade de cervejas artesanais que se podem beber na maior cidade do Estado de Washington. Ficaram desiludidos com a escassa oferta. “Não vínhamos com a intenção de abrir uma fábrica de cerveja artesanal, mas acabou por se tornar uma necessidade, dada a pouca oferta ainda existente no mercado português, saturado pelas cervejas industriais”. A Dois Corvos está em fase final de arranque e vai ser lançada no mercado “muito em breve” – revela Susana Cascais.

A empresa Heróis e Conquistadores nasceu em Aveiro, a 9 de maio de 2013, para produzir a Mediaevalis. Alexandre Carvalheira dá conta que a empresa nasceu “da vontade incondicional de levar avante um projeto que desse uma resposta sólida e diferenciada, ao nível do mercado da cerveja artesanal portuguesa de qualidade”. Assentou a sua linha de ação em três vertentes: venda dos produtos através da restauração e lojas da especialidade; venda por meio de loja online; e venda e promoção em festivais da especialidade e feiras medievais.

Já a Passarola (Lisboa) foi criada por Rob Klacek, australiano com experiência em cerveja caseira e profissional da distribuição de bebidas, e André Pintado, provador amador, com currículo de mais de 1500 cervejas testadas.

cerveja Dois Corvos

“A ideia surgiu em Lisboa, onde o meio cervejeiro continua pequeno e onde toda a gente se conhece”. O motor foi posto a trabalhar por duas razões: “o amor pela cerveja artesanal e cerveja criativa, e a oportunidade que o mercado nos oferecia quando começámos” – explica André Pintado. Começou em abril de 2014 e em setembro foi mostrada em Cascais, no mercado da cerveja.

Investimentos muito díspares

Montar um negócio tem sempre particularidades. Um incontornável é o da dimensão pretendida. Embora tratando-se de produções artesanais, o intervalo dos valores dos investimentos é enorme.

Os “protótipos” da 5 e Meio começaram em junho de 2013, após a aquisição de um kit básico. A primeira cerveja veio ao mundo em agosto desse ano. “Desde o nascimento da ideia até ao momento, o investimento encontra-se perto dos 5000 euros, o que nos posiciona como uma microcervejeira” – informa Nélson Miranda.

De acordo com responsáveis da 7 Mares (Pombal), embora houvesse vontade de criar a sua cerveja, a Feira das Tasquinhas e Artesanato de Pombal, em setembro, impulsionou a estreia. O investimento situa-se entre os 30 000 e os 40 000 euros.

Para a produção da Mediaevalis foram investidos 20 000 euros, revela Alexandre Carvalheira. A Arrábida Beer Company investiu até ao presente 30 000 euros. Muito além está a Bolina, cujo investimento inicial rondou os 200 000 euros.

Paulo Bastos não revela o montante aplicado no projeto Bordallo. “O investimento ainda se encontra a decorrer e está a ser efetuado por fases. O valor total vai, em parte, depender do retorno e aceitação que o projeto irá ter. Não ambicionamos ser um grande produtor cervejeiro, o nosso objetivo é focarmo-nos no mercado local. Pretendemos implementar o conceito de uma microcervejaria regional”.

Já a 7 Mares encaixa-se no padrão da realização pessoal e aproveitamento de oportunidade de negócio. “A ideia de conceber a cerveja artesanal 7 Mares já vem de há algum tempo, sempre tivemos a ambição de criar uma cerveja artesanal, porque além de consumidores deste tipo de cerveja, tivemos sempre vontade de produzir uma cerveja que marque a diferença no panorama nacional. Aquilo que nos fez avançar foi o facto de querermos abordar o mercado, aproveitando haver uma oportunidade para podermos produzir e comercializar o nosso produto, sempre com uma abordagem diferente no mercado das cervejeiras, oferecendo a quem consome não só o prazer de desfrutar de uma cerveja artesanal de qualidade, mas também oferecer a quem revende a nossa marca a oportunidade de ser promovido numa plataforma que vamos criar a curto prazo”.

A atividade comercial da 5 e Meio é recente, mas Nélson Miranda sublinha o interesse crescente, pelo que considera haver “boas perspetivas para o futuro”. Esta empresa de Mafra não tem cervejaria própria, vende para fora, restauração e lojas gourmet, e apenas utiliza garrafas de 33 centilitros. “O preço fica ao critério do retalhista, ainda que balizado pelo das outras cervejas igualmente presentes no mercado. A cerveja artesanal é produzida em pequenos lotes, o que a torna mais exclusiva, pelo que o preço nunca será comparável ao de uma cerveja industrial”.

Passarola - cervejeiro

Os preços de venda da Bolina variam consoante o local. A empresa não tem cervejaria própria. A cerveja é vendida na fábrica, restaurante, bares e lojas gourmet, adianta Maria Camila Begonha.

“O negócio a nível de reconhecimento da marca 7 Mares está a correr bem e como planeado pela administração; a nível de volume de vendas estamos ainda na fase inicial, devido a burocracias”. A empresa não possui cervejaria, as vendas fazem-se “essencialmente para lojas, restaurantes, bares e mercados gourmets”. A empresa quer estar presente no maior número de locais possível, “para tentar mostrar a qualidade das cervejas artesanais produzidas em Portugal”.

A Passarola também não tem poiso próprio: “vendemos para restaurantes, bares, lojas gourmet, supermercados e hotéis” – revela André Pintado.

As vendas da Arrábida Beer Company fazem-se no mesmo circuito. O mesmo acontece com a Deusa. Tal como as restantes empresas com que a ENOVITIS contactou, a Passarola não tem cervejaria própria. No entanto, esse desejo existe, mas para longo prazo, informou André Pintado.

Um negócio a crescer

Neste negócio é tudo muito recente. A maioria dos empresários que responderam não tem ainda noção dos momentos altos do consumo. No entanto, há quem tenha sentido maiores vendas no verão e na época do Natal.

Porém, há quem discorde: “na realidade, há cerveja para todas as épocas do ano. Os portugueses não estão habituados a beber cerveja no inverno, porque a cerveja comercial portuguesa é uma cerveja que se deve beber muito fresca. Nem todas as cervejas se devem beber a quatro ou cinco graus, e se isto acontecer o choque térmico no inverno acaba por não ser elevado” – explica André Pintado.

João Gonçalves, promotor do sítio Cerveja Artesanal Portuguesa, tem uma visão alargada, visto lidar com todos os artesãos. “Ao nível da cerveja artesanal não se pode falar especificamente em épocas altas. Se falarmos em cerveja corrente, aí estamos claramente a falar do verão. No mundo artesanal, apesar de ainda serem mais vendidas no verão, a diferença de consumo não é assim tão grande como é relativamente à cerveja corrente. O facto de existirem cervejas cujo consumo deve ser feito especificamente no inverno, ou mesmo as ‘saisons’ (que ainda existem em pequeno número em Portugal), faz com que os consumidores estejam sempre atentos a este tipo de oferta limitada. Aliás, o próprio facto de haver lançamentos limitados faz com que a época alta não seja assim tão alta e que o consumidor vá gastando relativamente o mesmo, em cada mês, em cerveja, tendo o seu pico normalmente em meses mais quentes”.

Haverá copos para todas?

“Até ao momento a experiência tem sido positiva e bastante gratificante. Foi mais uma das razões que contribuíram para avançarmos com o investimento rumo à comercialização. Queremos dar a oportunidade aos caldenses e aos visitantes das Caldas da Rainha de degustarem a Cerveja Bordallo. Pretendemos que um passeio esteja também associado à Cerveja Bordallo, como está para o turismo, cultura e artes. Olhamos para os próximos tempos com otimismo para tornarmos os produtos comercializáveis” – afirma Paulo Bastos.

“Pelo que temos verificado, o mercado das cervejas artesanais ainda está em desenvolvimento. Acreditamos que este tipo de cerveja esteja a sofrer um aumento de consumo devido à ‘novidade’. Também acreditamos que, quando estabilizar, venha a ter um comportamento semelhante ao das cervejas industriais, ou seja, os meses de verão venham a ser os meses fortes de consumo. Contudo, há tipos de cerveja que se adequam aos meses mais frios e que apenas se produzem nessa época” – afirma Nélson Miranda.

“A exclusividade é a alma do negócio. Mais ou menos inspiradas em fórmulas conhecidas, cada cervejeira tem as suas receitas. Não estará tudo inventado, mas os estilos produzidos enquadram-se nos géneros preferidos pela generalidade dos apreciadores.”

Para a 7 Mares não há confusão possível entre as cervejas artesanais e as industriais. Ao mesmo tempo, os responsáveis desta casa congratulam-se com o sucesso de concorrentes. “Neste momento, e ainda bem para todos, existem duas marcas de cerveja artesanal portuguesas que foram reconhecidas internacionalmente: a cerveja Maldita e a cerveja Vadia, o que é óptimo para todos nós que produzimos. A procura aumentou”.

A oferta está a aumentar, tal como o número de cervejeiras artesanais. Segundo Maria Camila Begonha, “por enquanto ainda há espaço para todas as cervejas artesanais existentes”.

Menos otimista, Paulo Silva, da cerveja Deusa (Oliveira de Azeméis), afirma: “acho que vai acontecer o que aconteceu, primeiro em Itália e também em Espanha; o mercado vai fazer a seleção”.

“Estão a surgir bastantes marcas de cerveja artesanal e cada uma terá de definir a sua estratégia de ‘ataque’ ao mercado. Neste conjunto de marcas verificamos existirem três marcas com um nível de produção elevado (mais de 7000 litros mensais), um conjunto de marcas com um nível intermédio (2500 litros) e microcervejeiras, como é o caso da 5 e Meio. Acreditamos que algumas virão a desaparecer, outras venham a fundir-se e outras tenham de mudar um pouco o âmbito do seu negócio” – sentencia Nélson Miranda.

A Bolina fabrica seis variedades, com uma produção total mensal que ronda os 2500 litros. “Estamos sempre a criar novos tipos de cerveja, dando a possibilidade aos nossos clientes, de experimentar aromas e sabores novos e únicos”.

cervejas artesanais

A Passarola tem vendido entre 700 a 800 litros por mês, “mais ou menos metade em garrafas de 0,33 e a outra metade em barris de 18 litros” – revela André Pintado. Num curto prazo não há que temer a concorrência, afirma. “A médio prazo, algumas terão de desaparecer por várias razões: falta de qualidade, falta de produção, falta de investimento em marketing, etc”.

A 7 Mares produz atualmente 6000 litros, mas o objetivo é chegar “quase ao dobro”, num curto espaço de tempo. “Há mercado para tudo e todos, espero bem que todas as empresas de produção de cerveja artesanal cresçam no mercado em que todos estamos inseridos, seria ótimo para todos”.

“Portugal tem pouca tradição cervejeira. Somos um país de produtores de vinho. Neste momento, começa a ocorrer um despertar para o mundo da cerveja. As pessoas começam a descobrir que existe vida para além da Super Bock, da Sagres e afins. Há vários projetos ativos de cerveja artesanal e durante os próximos tempos, certamente, outros irão aparecer. Acreditamos que não haverá espaço para todos, porém haverá sempre oportunidades para nichos” – salienta Paulo Bastos.

Para Susana Cascais, “há uma lacuna de mercado por preencher e satisfazer. Há uma imensidão de cervejas por descobrir, e em Portugal esta janela está a começar a abrir-se”. Esta empresária afirma notar “que há uma curiosidade e uma vontade em experimentar. As Dois Corvos vão ao encontro desse consumidor, que está atento, recetivo e aberto a novas experiências no mundo da cerveja. Somos já um povo apreciador das coisas boas, caseiras, feitas à mão, naturais, como o pão, os queijos, os doces, e tantos outros exemplos. Até há pouco tempo, o mercado das cervejas era totalmente dominado pelas marcas industriais, não havendo alternativas, mas o cenário está definitivamente a mudar, e os portugueses podem agora começar a desfrutar de cervejas artesanais saborosas e diversificadas”.

A responsável pela Dois Corvos acrescenta: “noutros países europeus, assiste-se já a uma revolução no segmento das cervejas artesanais. Portugal está agora a dar os primeiros passos. No entanto, existem já vários pequenos produtores artesanais espalhados um pouco por todo o país, e, com o nosso trabalho conjunto, contribuiremos para divulgar a cerveja artesanal como uma bebida de grande qualidade e ganhar aceitação junto dos consumidores”.

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“Acreditamos, na Arrábida Beer Company, que existe lugar para todo o tipo de cervejas, visto que os gostos da população variam, e visto que as nossas cervejas não são artesanais, mas autênticas ‘craft beers’” – garante Valentina Resel.

“Pessoalmente penso que não há lugar para todos os produtores que estão listados no projeto Cerveja Artesanal Portuguesa. Enquanto o nível de consumo não aumentar drasticamente, e aqui estou a falar em número de clientes e não em número de litros por pessoa, só haverá espaço para cerca de seis ou sete marcas que se aguentem, por mais de cinco anos, a produzir profissionalmente” – sublinha João Gonçalves.

“Pelo que temos verificado, o mercado das cervejas artesanais ainda está em desenvolvimento. Acreditamos que este tipo de cerveja esteja a sofrer um aumento de consumo devido à ‘novidade’.”

O responsável do sítio Cerveja Artesanal Portuguesa sublinha que este crescimento de empresas está ligado à facilidade de produção, sendo que muitos recorrem a kit. “Obviamente que estes produtores nunca vão singrar no mercado. É apenas um pequeno hobby e, muitas vezes, serve para agradar aos amigos. Com esses projetos não temos de nos preocupar, porque também não são estruturados para serem empresas. São estruturados para consumo próprio e venda em pequenas quantidades”.

Golias e David não se combatem

A luta pelo mercado, entre pequenos e gigantes, não existe. Um negócio não anula o outro – essa é a conclusão que se tira das respostas dos inquiridos. “Não acreditamos na concorrência, mas na preferência do cliente por cervejas de gostos diferentes” – afiança Valentina Resel.

Para João Gonçalves, “as grandes marcas de cerveja não são concorrência. O consumidor que entra no mundo das cervejas artesanais, mesmo com pouca experiência, tenderá a consumir mais cerveja artesanal. O problema que se prende em Portugal é o custo associado a este tipo de bebida. Atualmente, os preços médios ainda são altos, mas não deixam de ser justos para o panorama nacional. O ideal era que as cervejeiras portuguesas pudessem escalar um bocadinho mais, mas sem nunca perder a identidade, continuando a praticar preços justos, mas relativamente mais baixos ao nível atual”.

Nélson Miranda garante que “as marcas de cerveja artesanal nunca serão concorrência para as grandes marcas de cerveja. Primeiro pela dimensão destas que tornam o processo de fabricação imbatível, depois porque estas marcas possuem todo um know-how e recursos que lhes permitem fazer o que bem entenderem. Relativamente ao cliente, não acreditamos existir transferência de consumo a um nível globalizado, pois tudo depende da ocasião. Um cliente numa esplanada a comer tremoços e caracóis não vai pedir uma cerveja artesanal, mas acreditamos que um cliente num bar que venda cerveja artesanal vai querer provar e continuar a beber, pois vai obter uma experiência de palato e aroma que não encontra na cerveja industrial”.

Paulo Bastos pensa que não há qualquer possibilidade de guerra entre as grandes empresas cervejeiras e as artesanais. “São produtos diferentes. Criando uma analogia com a carne; um apreciador de hambúrgueres do McDonald’s não quer saber de Denominação de Origem de Proveniência, como as raças Mirandesa, Barrosã ou Angus Aberdeen. Existem consumidores que estão recetivos a novos produtos e há outros que pretendem continuar a ser fiéis ao que conhecem”. Alexandre Carvalheira sintoniza a mesma certeza: “As marcas comerciais não são concorrentes das artesanais, pois estamos a falar de um produto de características diferentes”.

Para os promotores da Passarola, “as grandes marcas de cerveja não são concorrência. Na realidade, atualmente, não sei se o cliente as distingue, mas a médio prazo tenho a certeza que vai distinguir. Nos vinhos, um vinho de esplanada de três euros não é concorrência para um vinho de reserva de 18 euros. Na cerveja, as contas são iguais; uma cerveja comercial de esplanada de um euro também não é concorrência para uma cerveja de mesa de seis euros”.

Mais do que uma luta entre Golias e um David anão, o mercado da cerveja artesanal pode ter como adversários produtores que, de algum modo, podem estar apenas a atrapalhar. “Eventualmente será necessário proteger o consumidor, distinguindo a cerveja que é feita a partir de kit e a cerveja feita a partir dos métodos tradicionais. Aí todos os intervenientes sairiam a ganhar: os consumidores, por terem uma marca que comprova a originalidade da cerveja; os produtores profissionais, por terem uma marca de qualidade que faz com que possam praticar preços justos; e os produtores amadores por terem um espaço próprio, feito especificamente para tentar, experimentar, brincar com o negócio da produção de cerveja” – opina João Gonçalves.

“Portugal tem pouca tradição cervejeira. Somos um país de produtores de vinho. Neste momento, começa a ocorrer um despertar para o mundo da cerveja. As pessoas começam a descobrir que existe vida para além da Super Bock, da Sagres e afins.”

Público-alvo bem identificado

As empresas consultadas têm um ponto em comum: as receitas são exclusivas, ainda que se possam arrumar nos grupos dos diversos géneros predominantes. Nenhuma tem local próprio e exclusivo, uma cervejaria só sua.

Quer por raridade e diferenciação, seja por escala insuficiente para se obterem custos mais reduzidos, os preços das cervejas artesanais são obrigatoriamente mais elevados do que das grandes cervejeiras. Ainda que possam não ser para o dia a dia, qual é o seu público?

“Um consumidor atento, que está ciente de que há um mundo para além de ‘uma imperial, se faz favor’”, esclarece Susana Cascais. Para Paulo Silva, da Deusa (Oliveira de Azeméis), o consumidor português “neste momento ainda anda na descoberta”.

“Apreciadores de boa cerveja artesanal. Cada vez há mais pessoas a descobrirem que a cerveja pode apresentar-se em tantas variedades e que há sabores com que todos acabam por se identificar” – sublinha Nélson Miranda.

“O público-alvo são todos aqueles que gostam de cerveja e aqueles que gostam de provar algo diferente e de qualidade” – refere a 7 Mares.

“O público-alvo é lato. Homens e mulheres, dos 20 aos 50 anos. A experiência tem-nos mostrado que as pessoas que mais apreciam cerveja artesanal, em geral, são pessoas viajadas e que procuram alimentos ou bebidas diferentes do habitual” – afiança André Pintado.

A exclusividade é a alma do negócio. Mais ou menos inspiradas em fórmulas conhecidas, cada cervejeira tem as suas receitas. Não estará tudo inventado, mas os estilos produzidos enquadram-se nos géneros preferidos pela generalidade dos apreciadores.

As quatro cervejas da 5 e Meio têm fórmula exclusiva, não são feitas a partir de receitas conhecidas. “Todas as nossas cervejas têm o nosso toque pessoal, pretendendo ir ao encontro dos nossos objetivos estratégicos. Obviamente, fazemos o nosso estudo e pesquisa quanto a receitas já criadas e que tenham boas críticas, mas procuramos dar-lhes sempre a nossa identidade fazendo alterações que consideramos ir ao encontro do que pretendemos para a 5 e Meio”. A empresa está a estudar novos produtos.

“As receitas são baseadas em estilos amplamente conhecidos como a weissbier, witbier e IPA, mas tentamos dar-lhe sempre um toque pessoal de acordo com as preferências de cada um dos elementos integrantes. Como a equipa é constituída por quatro elementos, e temos alguns gostos diferentes, acaba por se tornar uma experiência muito interessante” – explica Paulo Bastos. As cervejas Bolina têm também receitas exclusivas, embora “inspiradas em estilos mundialmente reconhecidos”.

A Bordallo produz três variedades de cerveja, mas pretende alargar a oferta. No mundo, o principal estilo é o pilsner, pelo que esse género não interessa aos responsáveis desta empresa.

A Deusa nasceu do gosto de Paulo Silva, que encontrou motivação num segundo prémio num concurso ibérico. A ideia avançou em 2012. Atualmente, na sua fábrica são produzidas quatro referências, inspiradas principalmente em receitas belgas, sendo que as fórmulas são próprias.

“Nos vinhos, um vinho de esplanada de três euros não é concorrência para um vinho de reserva de 18 euros. Na cerveja, as contas são iguais; uma cerveja comercial de esplanada de um euro também não é concorrência para uma cerveja de mesa de seis euros.”

A 7 Mares produz pilsner e também à base de trigo, e vontade de alargar a oferta. “É relativamente fácil fabricar, tendo em conta que é tudo artesanal, desde o fazer cerveja até à rotulagem”.

A fábrica da Dois Corvos está prestes a arrancar. “Vamos produzir uma variedade de estilos, e estamos neste preciso momento a finalizar o nosso leque de produtos a lançar muito em breve”.

No projeto Passarola a oferta é diferenciada. “As receitas são integralmente nossas. Seguimos em parte a tendência americana (que existe há já 30 anos) e o ‘revival’ que se está a viver na Europa nos últimos dez anos”.

Os empresários da Passarola querem, a curto prazo, apresentar “duas ou três variedades, mas ainda são segredo, mas que deixarão de o ser em breve”. Pilsner é que não serão: “não apostamos nas pilsners, e não está nos planos para este ano, mas não negamos nenhum estilo de cerveja”.

“As nossas cervejas foram criadas a partir de receitas com base nas tradições cervejeiras alemãs, tendo produzido vários tipos de cerveja” – adianta Valentina Resel. Atualmente, Arrábida Beer Company produz pilsner, lager, aler, porter e weissbier. O cardápio será alargado e certos estão os estilos pale, ale e “receitas antigas de cervejas”.

Alexandre Carvalheira informa que as Mediaevalis inspiram-se na história “e nos estilos weissbier e dunkel alemães. Sendo estas de receita e criação própria”. Atualmente são apenas duas as Mediaevalis, mas novas cervejas poderão ser acrescentadas ao portefólio. Porém, as pilsners estão fora dos objetivos.

Quanto a géneros de cerveja, André Pintado considera que ainda não é possível descortinar um que agrade especialmente aos portugueses. “Para já, o mercado está confuso e interessante. Os portugueses estão a querer experimentar todas as cervejas artesanais e não creio que haja cervejas (tipos ou marcas) que os portugueses prefiram. É bem provável que os portugueses nunca venham a escolher uma só marca ou tipo de cerveja artesanal. E isso é bom”.

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Fazer cerveja é simples… ou não

Produzir bens alimentares complexos implica a contratação ou recurso a consultadoria externa. A disponibilidade de mão de obra parece ser escassa para alguns, mas outros cervejeiros não a sentem. “Em Portugal, não existe qualquer tipo de técnicos associados às cervejarias” – sentencia Valentina Resel.

O fabrico não é fácil, adianta Nélson Miranda, uma vez que “a produção implica ter-se conhecimentos de química e biologia, para além de ser necessário controlar-se as temperaturas de repouso da cerveja”.

Opinião contrária tem Paulo Bastos, que garante que o processo “é relativamente simples, requer apenas alguns cuidados com pormenores”. Dificuldades também não dão dores de cabeça aos empresários da Bolina. “É o nosso mestre cervejeiro que faz a fabricação de todas as nossas cervejas, com auxílio de um ou dois ajudantes” – adianta Maria Camila Begonha.

Ao contrário de outros produtores, a Passarola não tem fábrica própria. “Contratamos a Faustino Microcervejeiros para fazer a nossa cerveja”. André Pintado acrescenta: “não é difícil fabricar, mas não há muitos profissionais ainda no setor e, sobretudo, não há educação suficiente no setor. Há falta de cursos longos de mestre cervejeiro, sommelier, empregado de bar, etc”.

A obtenção de matéria-prima não é difícil. No entanto, Portugal não tem oferta que satisfaça os artesãos da cerveja. As fontes de aprovisionamento são sobretudo a Alemanha e a Bélgica, mas também Áustria, República Checa e Espanha.

Mais cervejeiro que vinhateiro

A crença dos portugueses poderá indicar que Portugal é um país de vinho e não de cerveja. Entrevistados assim o creem. Mas será mesmo verdade? Dados referentes a 2013, fornecidos pela Associação Portuguesa de Produtores de Cerveja (APCV – que agrupa as cinco empresas industriais) e pela Viniportugal desmentem a afirmação de que o nosso país é mais vinhateiro do que cervejeiro.

Nesse ano produziram-se 730 000 000 de litros de cerveja e 674 000 000 de vinho. Um retrato mais nítido é o do consumo per capita: 49 litros de cerveja (dados APCV), contra 40 litros de vinho, apurados pelo Instituto Nacional de Estatística. A produção de cerveja artesanal foi de 200 000 litros, de acordo com a APCV.

A APCV não revela informações estatísticas sobre os seus membros. Mesmo sem dados, não é preciso um estudo muito vasto e complexo para se saber que a Sagres (Central de Cervejas) e a Super Bock (Unicer) lideram o mercado.

As cinco unidades industriais são: Empresa de Cervejas da Madeira (Coral); Fábrica de Cervejas e Refrigerantes João Melo Abreu (Especial Melo Abreu); Font Salem (Cintra, além de outras marcas – empresa espanhola e sem informação em língua portuguesa); Sociedade Central de Cervejas e Bebidas (Sagres e Heineken, além de representação de marcas industriais); e Unicer – Bebidas (Super Bock, Carlsberg, Cristal e Cheers).

A preferência dos portugueses pela cerveja tem mais tradição do que se pensa. No século XVII, para proteger os produtores de vinho, a Câmara de Lisboa aumentou as taxas aplicadas à cerveja.

Artigo publicado na edição de janeiro/fevereiro/março de 2015 da revista ENOVITIS