São Pedro de Merelim, em Braga, guarda 44.752 acessos (ou amostras) de recursos genéticos vegetais. São sementes de 255 espécies vegetais e de 143 géneros de plantas cultivadas e parentes silvestres. É uma arca de Noé de cereais, de leguminosas grão, de hortícolas, de pastagens e forragens e de plantas aromáticas, medicinais e condimentares. Essa arca portuguesa designa-se Banco Português de Germoplasma Vegetal (BPGV) e é fruto de um trabalho laborioso, minucioso, exaustivo iniciado exactamente há 40 anos.
Uma das riquezas do BPGV é a colecção de milho que, desde a sua criação, em 1977, colheu e conservou. A importância desta colecção, que se materializa em 2.384 acessos, permitiu ao BPGV ser nomeado Banco Mediterrâneo do Milho e assegurar que possui o segundo maior acervo desta espécie do mundo. São acessos de várias regiões do país, num esforço de preservação de variedades como o milho branco, amarelo, laranja, creme, pinto, zorrinho, rei… e também de países mediterrânicos. Em Braga, estão conservados duplicados de acessos de milho de Espanha, Iémen, França, Alemanha, Grécia, Itália e Marrocos.
O BPGV, um organismo do Ministério da Agricultura e do Mar, é um dos 170 bancos de germoplasma do mundo com mais de 10 mil acessos conservados. Em fevereiro, enviou 217 amostras de milho para Svalbard Seed Vault, na Noruega, nas comemorações do 10º aniversário desta estrutura, que guarda sementes de todo o mundo. O Svalbard Seed Vault, cuja porta abre apenas quatro vezes ao ano, tem como um dos objectivos possuir uma duplicação das sementes que existem em todo o mundo. Em 2015, foram retiradas sementes deste silo mundial e enviadas para um banco genético de Alepo, na Síria, destruído parcialmente devido à guerra civil naquele país.
No 9º Colóquio Nacional do Milho, uma organização da ANPROMIS – Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo, que decorreu na Póvoa de Varzim, entre 7 e 8 de Fevereiro, os participantes foram convidados a ver ‘in loco’ todo o trabalho realizado e em curso do BPGV.
Origem do futuro
“Conservar a origem do futuro” – é desta forma que Ana Barata, responsável pelo BPGV caracteriza o trabalho que diariamente os 23 colaboradores do banco levam a cabo. É um trabalho em prol da humanidade, com o objectivo centrado na valorização dos recursos genéticos e dos recursos endógenos vegetais. O papel do BPGV é a preservação da diversidade genética de sementes e parentes silvestres, numa atenção ao presente e sobretudo ao futuro. No banco são conservados recursos genéticos vegetais ou seja material genético de origem vegetal com valor real ou potencial para a alimentação e agricultura.
Para Benvindo Maças, do INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária – onde se insere o BPGV), os recursos genéticos são “um tesouro para a agricultura” e, com especial incidência, numa altura em que é sabido que “o mundo precisa de produzir mais 69% de calorias em 2050, quando comparado com 2006”. Num contexto de alterações climáticas, de necessidade de incrementar a produção agrícola e do esgotamento da capacidade de variedades com base genética reduzida, o “tesouro” guardado no BPGV é uma resposta a todos estes dilemas com que se debate o planeta.
Os recursos genéticos são um tesouro para a agricultura e, com especial incidência, numa altura em que é sabido que o mundo precisa de produzir mais 69% de calorias em 2050.”
O BPGV conserva a diversidade genética de produtos agrícolas, que tanto pode ser utilizada pelos agricultores em plantações tradicionais e biológicas como em projectos de investigação, que visem conferir às sementes maiores resistências e rentabilidades. As sementes conservadas no BPGV são “uma resposta às alterações climáticas” e através de “novas e antigas formas de produção permitem reduzir a pegada hídrica e de carbono”, sublinha Ana Barata.
Nestes 40 anos, o BPGV realizou 128 missões de colheita de amostras (algumas em Espanha) junto de agricultores e em zonas de produção silvestre. Todas essas amostras são avaliadas aos níveis morfológico e agronómico. Ana Barata também recebe sementes que os agricultores fazem chegar ao banco. “Aceito e recebo tudo, depois vou analisar, ver que material é”, diz. O trabalho é ir buscar ao passado e ao presente para que a biodiversidade seja uma garantia para os dias de hoje e para o futuro, para as novas gerações, realça. A segurança alimentar é outra das bases deste trabalho.
Todo este processo, meticuloso e exaustivo, assume a sua materialidade nos agricultores, que têm acesso directo às sementes. Como explica Ana Barata, o BPGV doa sementes aos agricultores, estipulando regras e partilha de benefícios. Por exemplo, são oferecidos 50 grãos de semente, mas o agricultor tem a obrigação de multiplicar essas sementes para utilização própria e de repor no banco. “O banco tem de garantir que tem um stock mínimo” de amostras, frisa.
Do banco para a economia
As colecções do BPGV estão disponíveis para potenciar a actividade agrícola nacional. O acervo de cereais (com 8.519 amostras), onde se destaca o milho, tem também uma valiosa representação de trigo e de arroz, e pode assumir um papel essencial na estratégia de combate à fome no planeta. Segundo informação do BPGV, os cereais representam cerca de 70% das calorias da dieta humana e, em Portugal, tem-de verificado um desinvestimento progressivo na produção destes alimentos. O milho, que no Norte assumiu tradicionalmente um papel alimentar essencial devido ao pão, é disso exemplo, registando-se a degradação do edificado do património agrícola (moinhos, espigueiros).
A colecção de leguminosas do BPGV é rica em número de acessos (6.359) e em espécies. Em Braga, há sementes de feijão (3.352 acessos), feijoca, feijão-frade, fava, ervilha, lentilhas, chicharo, grão-de-bico e tremoço. Numa estratégia de conservação e preservação das variedades regionais, o BPGV apostou no programa “Conservação no campo do agricultor”, a produção ‘in farm’, que resultou na inscrição do feijão tarrestre na Arca de Sabores do Movimento Internacional Slow Food e no Catálogo Nacional de Variedades 2017.
A Cooperativa dos Arcos de Valdevez e Ponte da Barca tem dinamizado a produção e comercialização deste produto, que é símbolo na região de tradição, cultura e história. Uma das riquezas gastronómicas de Arcos de Valdevez está assente no feijão tarrestre, espécie endémica, seja em sopas, arroz malandro ou a acompanhar carne de vaca Cachena, raça bovina da região. A broa de milho de Arcos de Valdevez foi também acolhida pelo movimento Slow Food.
Apesar destes reconhecimentos, a produção é escassa e por vezes, aquando das semanas gastronómicas, as matérias-primas não chegam para as encomendas. Ana Barata sublinha que o “feijão tem características muito interessantes do ponto de vista nutricional” e “o feijão tarrestre é um óptimo alimento no combate ao colesterol”. A valorização destes produtos permitiria “a fixação de populações”, um dos problemas com que se debatem as regiões agrícolas e do interior em Portugal.
O acervo de plantas aromáticas, medicinais e condimentares é também vasto e diversificado, com 1.185 acessos, dos quais 78% são silvestres.”
A pouca importância dada às espécies locais e a tendência de seguir um mercado ditado por outros fez com que se esquecesse, por exemplo, a importância nutricional da couve galega. Violeta Rolim Lopes, investigadora do BPGV, realça que os brócolos (de origem italiana) são actualmente uma das principais produções de hortícolas em Portugal e que isso deriva na perda da cultura das couves portuguesas, com valores nutricionais muito superiores. No BPGV existem 3.847 amostras de hortícolas. Outra chamada de atenção é a produção de alho e cebola, que está muito aquém da sua potencialidade económica. Em Braga, estão conservadas 215 amostras de cebola e 290 de alho.
O acervo de plantas aromáticas, medicinais e condimentares é também vasto e diversificado, com 1.185 acessos, dos quais 78% são silvestres. Segundo o BPGV, a colecção tem aplicabilidade em farmacologia, agroalimentar, cosmética e perfumaria, gastronomia, medicinas alternativas e tradicionais, entre outras actividades.
Conservar para todos
Todas estas amostras necessitam de ser conservadas para uso presente e futuro. A conservação das sementes é um trabalho que começa com a recolha das espécies, através de missões de colheita, e também da recepção no local de amostras. É feito o registo de cada amostra para se avançar posteriormente para a fase de conservação. A especificidade de cada espécie é que vai ditar o método de conservação.
O BPGV coloca as sementes em câmaras de frio (temperaturas de 0 a 5ºC) quando a propagação é por via seminal e para situações de médio prazo ou colecção activa. Em condições de longo prazo, as sementes são guardadas em câmaras com temperaturas de 18 graus negativos. Como refere Ana Barata, as sementes são alvo de testes de germinação para verificar a sua viabilidade, no início e em intervalos regulares durante a conservação. Se a taxa de germinação baixar, a semente é levada para o campo para ser multiplicada. O processo segue as seguintes etapas: registo, limpeza, testes de germinação, medição do teor de humidade, desidratação, embalagem, selagem e conservação.
Já as espécies de propagação vegetativa são conservadas ‘in vitro’ e no campo. A conservação ‘in vitro’, que permite um cultivo asséptico, é feita em câmaras com temperatura e fotoperíodo controlado para induzir a regeneração das plantas. Este método é utilizado para sementes de difícil propagação e para espécies em que a obtenção do acesso é complexo. O processo de conservação ‘in vitro’ inicia-se com a desinfecção da planta, a que se segue o estabelecimento em recipientes de vidro, a multiplicação da espécie, o enraizamento, a aclimatação e conservação.
O BPGV desenvolveu ‘in vitro’ colecções de alho, chalota, alho-porro e de fruteiras (pereiras, clones de pêra-rocha e variedades de macieiras). Neste momento, também há poejo e lúpulo conservado ‘in vitro’.
No campo, num terreno de oito hectares, o banco tem variedades autóctones e silvestres, num total de 558 acessos, com um foco especial no alho e no lúpulo. Mais melindrosas, as plantas aromáticas e medicinais estão também plantadas em vaso.
Todo o processo de conservação é completado com uma base de dados informatizada das espécies, onde constam os registos de missões de prospecção e colheita, a caracterização, regeneração e multiplicação, germinação, conservação e intercâmbio. Os interessados podem aceder à informação das amostras conservadas no BPGV através da plataforma Grin Global.
Entrevista a Ana Barata, coordenadora do Banco Português de Germoplasma Vegetal
O banco tem quase 45 mil acessos conservados. Todos esses acessos (sementes) têm potencial económico?
Sim, todos os acessos conservados podem ter potencial económico, seja atualmente seja no futuro, para as gerações vindouras.
Como são testadas essas sementes com potencial económico?
As coleções conservadas são avaliadas, de acordo com os descritores internacionais, para morfologia, química e molecular, o que nos permite ter a noção do potencial económico nas suas diferentes vertentes e potenciais usos.
Em que medida o banco pode conduzir os agricultores a produzirem vegetais e plantas aromáticas e medicinais que tenham valor de mercado?
O BPGV disponibiliza informação sobre as colecções conservadas através da plataforma Grin Global e que pode ser consultada na página do INIAV. No âmbito de alguns projectos desenvolvidos em parceria com os utilizadores tem sido possível desenvolver algumas estratégias de valorização dos recursos genéticos vegetais.
Qual a importância cultural do banco? Essa importância tem sido potencializada? Como?
A importância do BPGV reflecte-se no cumprimento da Missão de Estado de Portugal na conservação dos recursos genéticos vegetais. Esta estrutura nacional tem ainda responsabilidades internacionais, através da rede de bancos no mundo e também pelas responsabilidades na região mediterrânica, sendo banco mediterrânico de milho.
O banco enviou recentemente 217 acessos de milho para Svalbard Seed Vault. Porque foi decidido enviar estes acessos e não outros?
Os acessos enviados para conservação no Svalbard Seed Vault fazem parte da colecção de milho e são os primeiros que foram colhidos junto dos agricultores nos anos iniciais do BPGV, em 1977. Incorpora também este envio a colecção europeia de milho, com representação de duplicados de colecções de alguns países europeus.