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Os ‘futuros’ são ferramentas de gestão de risco

Mercados de futuro, agribusiness e a difícil relação com a indústria. Foi por aqui que passou a conversa com Francisco Gomes da Silva, professor de economia agrícola e consultor, que explicou à Vida Rural como pode a agricultura tirar partido dos negócios em Bolsa. Ou não…

Vamos falar de mercados de futuro. É um sistema que pode dar alguma garantia de preços aos produtores e permite deixar o risco do lado de quem quer especular…

Sim, o agricultor é normalmente conservador e assim pode transferir o risco que não está disposto a correr. Mas ao fixar um preço para daqui a seis meses corre o risco que as cotações nesse período de tempo aumentem. E é esse diferencial que representa o lucro de quem compra.

 

O pagamento só é feito à data do contrato?

Sim, na prática, o princípio do produto financeiro futuro não é mais do que o aproveitamento de contratos que são feitos fora da Bolsa. Hoje um agricultor pode, se encontrar um comprador disposto a isso, celebrar um contrato de escoamento da sua produção fora da Bolsa.

 

Isso não ainda não é muito usual em Portugal… com algumas excepções, caso da cevada dística ou dos horto-industriais…

Tínhamos também contratos na beterraba, que agora acabou. Mas de facto existem alguns produtos hortofrutícolas industriais em que existem contratos celebrados, normalmente não entre os produtores mas entre agrupamentos de produtores e a indústria ou o distribuidor. Quando não têm uma indústria de permeio estes contratos normalmente não existem. Dou-lhe um exemplo: não há intermediário nenhum que esteja disposto a celebrar um contrato com um produtor de batata de consumo. É um mercado muito pouco organizado, muito volátil, e o intermediário sabe que vai comprar na altura da colheita a um preço que lhe garante a margem pretendida. Quando existe uma agro-indústria já não é bem assim, porque a indústria tem necessidade de planear o seu aprovisionamento de matéria-prima.

 

Ou seja, se for batata para indústria, haverá contratos com a Matutano por exemplo…

Exacto, a Matutano faz, saudavelmente, contratos com organizações de produtores e garante desta forma contratos anuais ou plurianuais…

 

Mas tudo isto é fora de bolsa…

Sim. O mercado de futuros aproveita a existência destas intenções e cria um produto financeiro. Exemplificando com a agricultura: sou produtor de milho, vou começar a semear daqui a um mês e estimo vir a ter uma produção em Outubro de x toneladas. E vou tentar encontrar, neste momento, um comprador para a minha produção a um determinado preço, que considero interessante, e tentar fechar a minha posição no mercado. Uma das vias é ir ao mercado de ‘futuros’ e procurar interessados em comprar aquilo que quero vender. Assume-se então aquilo que se designa na gíria de uma ‘posição curta’ no mercado. Do outro lado há normalmente um especulador, aqui sem sentido pejorativo, que se compromete a comprar daqui a seis ou sete meses a um preço que, evidentemente, tem de ser acordado e tem de ser razoável para o mercado, caso contrário ninguém estaria interessado em fazer o negócio. Os preços não podem ser irreais, porque quem compra tem de acreditar que vai ganhar alguma coisa com isso mais tarde… Dentro de uma gama razoável de preços, há compradores que se comprometem a pagar a produção. O produtor assume uma posição de hedging, de cobertura de risco, que transfere para o especulador que pode deixar o contrato chegar ao fim, o que é raro, ou vender…

 

Porque é que os contratos nunca chegam até ao fim?

O objectivo do especulador no mercado é realizar lucro e mais-valias, não é comprar e vender milho. Ele utiliza esta vontade de cobrir um risco para assumir uma posição de comprador de uma mercadoria… E pode, em qualquer momento, fechar esta posição fazendo um movimento inverso no mercado. Ou seja, se compro um contrato de milho a seis meses, passados quatro começo a ter a noção que os preços foram evoluindo e percebo se vou ter ganhos daqui a dois meses quando o contrato terminar. E se achar que é duvidoso, posso assumir a posição contrária e colocar-me no mercado como vendedor do contrato e fechar a posição. Nunca chego a vender milho, transacciono papéis por um preço que está sempre muito relacionado com o preço da mercadoria ou activo que está na base. A cotação do futuro exprime, na prática, uma expectativa de preço que o mercado tem naquele prazo.

É preciso ter em consideração que um futuro tem sempre um local de entrega de mercadoria associado. Se compro um futuro que me diz que entrego mercadoria em Chicago, aquele preço é para Chicago, naquele dia marcado. Os contratos não são flexíveis, é a única forma de haver alguma transparência. Se vejo hoje uma cotação na Bolsa de Chicago para um contrato de futuro, de seis ou sete meses, o que esse valor me dá é a expectativa que existe neste momento do que poderá ser o preço do milho em Chicago daqui a seis meses. Não quer dizer que o preço vá ser esse, mas é a expectativa que existe no mercado. Do ponto de vista da produção agrícola tem vantagens, mas tem sempre alguns riscos e significa que há indicadores para um preço futuro que está a ser fabricado por um conjunto de agentes.

O ‘futuro’, enquanto instrumento de gestão do risco de mercado, é uma ferramenta. Se o meu objectivo é, enquanto produtor ou organização de produtores, assegurar atempadamente um determinado preço, desde que esse preço seja razoável com as expectativas do mercado, eu fecho esse contrato e a partir daí posso nunca mais olhar para as cotações, porque sei que tenho um contrato e que naquele dia terei de colocar x toneladas de milho em x local em troca de x valor…

 

Como é que funciona financeiramente, há garantias de pagamento?

Na prática são produtos financeiros que estão sujeitos à regulamentação que os mercados financeiros obrigam e há garantias que têm de ser dadas. Como todos sabemos pelas recentes crises, estas coisas valem o que valem…

Mas retomando, não podemos somar os volumes das commodities associadas a estes contratos, porque são volumes astronómicos que não existem. Porquê? Porque há muitas posições que são tomadas para ‘fechar’ outras…

 

Ou seja, os produtores também podem ‘fechar’ a sua posição…

Sim, claro. Imagine que um agricultor vende um contrato de futuro a sete meses e a meio apercebe-se que fez um mau negócio, porque a expectativa dele era que pudesse haver uma quebra de preço mas, afinal, as indicações são contrárias. Ou seja contratou a 130€ e afinal tudo indica que o preço irá aos 155€. Nessa altura, ele pode decidir fazer a manobra ao contrário e ir comprar um contrato para fechar a posição e tentar garantir uma margem… Passa é a ficar exposto ao risco, tudo isto tem as complexidades próprias destes mercados…

 

Os norte-americanos transaccionam muito em ‘futuro’…

Sim, a praça de Chicago é uma referência, com duas bolsas que pertencem ao mesmo grupo. É uma bolsa de produtos agrícolas e nessa bolsa aparecem produtos derivados das commodities onde estão os futuros.

A tendência é para a especialização da bolsa em certo tipo de ‘futuros’ e a distribuição é tendencial. Há futuros sobre leite gordo, leite magro, vai a este pormenor…

 

Ou seja, quanto mais volatilidade um produto agrícola tiver, maior possibilidade de ser transaccionado em futuro…

Sim. Produtos animais e derivados, cacau, café, algodão, açúcar, sumo de laranja, cereais, etc. A primeira condição é serem transaccionáveis. Se compro um produto para ser entregue em Chicago, Londres ou Amesterdão, tenho de conseguir levá-lo, tem de ter características físicas de fácil transporte e armazenagem e tem de ter um mercado com movimento, com grandes volumes de produção e agentes. São características básicas dos activos que servem de base aos ‘futuros’…

 

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Por isso é que não vemos frutícolas ou hortícolas nos futuros…

Sim, teoricamente pode ver coisas desse género, mas isso diminui a liquidez de mercado. Por exemplo, alfaces. Eu produzo alface em Portugal e imagine que na Bolsa de Lisboa existia um futuro sobre alfaces… os únicos agentes que iriam operar neste mercado seriam agentes geograficamente próximos do local de produção, porque o contrato de futuro tem de dizer que a minha alface vai ser entregue num local x. Ora, não há ninguém nos Estados Unidos que venha buscar o produto a Lisboa. Estas características limitam um pouco o que pode ser a liquidez do mercado e não podem existir futuros sobre produtos que não tenham liquidez. Se não existem muitas pessoas a querer comprar e a vender, muito menos existirão agentes a querer cobrir riscos e a querer especular.

Há aqui uma questão importante, os futuros são instrumentos de cobertura de risco de mercado mas apenas de curto prazo. Fala-se muito em volatilidade dos mercados, com o grande pico que houve em 2007 seguido de uma grande queda. E quando olhamos para o histórico verificamos que é verdade, por muitas razões. Mas esta é uma volatilidade de longo prazo que não é resolúvel, do ponto de vista do produtor, com os futuros. Aquilo que o ‘futuro’ permite fazer é gerir o preço num período de seis, sete meses, e sempre dentro dos parâmetros e expectativas do mercado. O que afecta as condições de oferta e procura de produtos agrícolas no mundo são factores que não têm a ver com isto.

 

E fazia sentido um mercado destes em Portugal?

A questão não é questão. Porque, para os produtos em que faz sentido, qualquer agricultor português, ou corrigindo, qualquer organização de produtores em Portugal tem acesso aos mercados internacionais. Não é necessário que existam futuros na Bolsa de Lisboa para que se possa usar este instrumento. Basta que existam em qualquer bolsa internacional para que uma organização de produtores decida comprar ‘futuros’, porque o preço a que estão é interessante para garantir a produção. Não aconselho que o faça directamente na Bolsa, deve fazê-lo através de agências que operam no mercado bolsista.

O mercado de futuros na Bolsa de Lisboa não existirá tendencialmente pelas questões que já referi: a produção nacional é muito reduzida quando comparada com os volumes que se transaccionam internacionalmente, logo não terá liquidez e, portanto, não será interessante. Agora, isso não impede a utilização de um instrumento por parte dos agentes portugueses. Há certamente especuladores de nacionalidade portuguesa que operam no mercado de futuros de produtos agrícolas, não há razão para não haver acesso a estes mercados. Como é evidente há obstáculos, é uma bolsa essencialmente viva nos Estados Unidos, do ponto de vista do seu dinamismo. As unidades não são as que nós usamos, a moeda não é a mesma, há um conjunto de traduções que traz outros riscos, porque faço um negócio em dólares mas quero euros. Mas isso ultrapassa-se se houver uma bolsa na Europa que transaccione futuros… Eu diria que desenvolver um mercado desses em Portugal não é problema.

 

Conhece alguma OP nacional que recorra aos mercados de futuro?

Não, mas não quer dizer que não haja. Aqui o volume não é o mais importante, há contratos de futuro com quantidades reduzidas, com o objectivo do hedging não precisa de muito volume. Faz sentido para grãos, milho, arroz, trigos, cevadas, sojas, girassol, para gado também, embora aí tenhamos de ter cuidado por causa do transporte…

 

Os brasileiros usam muito…

Bastante. Transaccionam gado vivo, carne e derivados… leites, manteigas, sumo de laranja, que é sempre apontado como um exemplo de sofisticação… Todos os produtos transaccionáveis, facilmente transportáveis, com uma conservação simples…

 

Mas o sumo de laranja existe porquê? Tem a ver com a produção da Califórnia e Florida?

Não sei qual é a origem, mas é perfeitamente possível que tenha existido uma convulsão algures no mercado das laranjas. E descobriram que para ser um ‘futuro’ não podiam vender laranja porque apodrece e passaram a fazer sumo.

Dos agentes envolvidos no mercado de futuros só uma minoria são produtores, o resto são especuladores de mercado que, de acordo com os seus feelings e informações, estão a contribuir para formar o preço futuro dessas commodities. E aí é que está o risco deste tipo de mercados, pela influência que têm nos níveis de formação de preços nos produtos que estão na base. E pode haver movimentos no mercado de alguma forma concertados que influenciam os preços, assumindo valores que nada têm a ver com a realidade da economia. É mais um factor a contribuir para a volatilidade do mercado.

 

Fora de bolsa, isto seria o desejável, vender toda a produção antecipadamente com contratos…

A contratação entre a produção e a indústria, ou entre as organizações de produtores e a indústria, é, na minha opinião, um elemento onde já está a ser ancorado o desenvolvimento de alguma agricultura, e é do ponto de vista o mais eficaz tanto em benefício dos produtores como das indústrias. Em todo o caso, tem de ter como premissa que ambas as partes envolvidas entendam que um contrato nem sempre vai ser o melhor negócio para ambas as partes. Em que é que acredito? Se não tomarmos apenas um ano, mas 10, nestes 10 contratos celebrados o balanço será certamente positivo, sobre isso não há grandes dúvidas. Porque dá garantias ao produtor, permite planear a sua produção de uma maneira mais sustentada e fazer contas de forma mais segura. E a indústria passa a ter controlo sobre o produto que vai comprar, pode fazer o planeamento do aprovisionamento, controlar a qualidade da produção e fiscalizar, que é um direito que assiste à indústria.

Temos excelentes exemplos de comportamentos exemplares de relacionamentos deste género, mas ainda existem muitos comportamentos da parte de algumas indústrias que são o oposto e que querem destruir as organizações de produtores porque entendem que no curto prazo preferem ter uma contratação directa com o produtor…

 

Mas, logisticamente, para a indústria é menos interessante…

Sim, mas passam o peso logístico para o produtor, que não se apercebe disso na altura e é aliciado com o argumento de que se fizer contratos directos ganha mais, dado que a organização de produtores tem sempre custos de estrutura. E numa época complicada como a que vivemos, por mais três ou quatro por cento o agricultor aceita…

 

E qual é exactamente o objectivo da indústria?

Ao dividir reina, passa a ter um poder negocial brutal e evita a concentração de poder por parte das organizações de produtores. Mas não tenho dúvida nenhuma que isto não vai resultar, estas indústrias vão dar-se mal. Neste momento é benéfico, porque a indústria está com excesso de stocks. É evidente que têm os agricultores todos a bater à porta e têm muito por onde escolher. Mas há-de chegar o momento, que não deve estar muito longe, dentro de um ano a avaliar pelas intempéries que têm estado a acontecer pela Europa toda em termos de produção, em que esta situação de stocks vai inverter. Já se começa a notar subida de preços nalguns produtos, casos da cebola, e nos outros hortícolas isso vai acontecer. Claro que isto não é possível com todos os produtos.

 

Nos últimos meses fala-se muito em fundos de investimento que apostam fortemente em ‘agribusiness’. A agricultura tem potencial real para este tipo de investimento ou estamos apenas a especular com previsões irreais de aumento do consumo de produtos agrícolas?

Dou-lhe a minha opinião sobre esse assunto. Em primeiro lugar, em Portugal, como noutro qualquer território, não existe uma agricultura. Existe uma enorme diversidade de agriculturas, que desempenham papéis muito distintos na sociedade, e não apenas, e muitas vezes nem essencialmente, como fornecedoras de matérias-primas alimentares. Consequentemente, com potenciais muito distintos para o que designa como “investimentos no agribusiness”.

Esclarecido este ponto, acredito fortemente que existem “agriculturas” em Portugal que têm um elevadíssimo potencial para atrair investimentos que estão por fazer, venham eles de fundos de investimento ou de investidores individuais.

Em Portugal existem alguns territórios ou zonas com condições naturais de produção ímpares em termos europeus para a produção de certos produtos que despertam muito interesse: zonas que têm bons solos, orografia adequada, água, temperatura, luz e, para além do mais, têm agricultores. Refiro-me, essencialmente, à produção de hortofrutícolas, tanto para fresco como, em particular, para a indústria, no sentido lato, incluindo aqui a limpeza, preparação, embalagem e frio. Isto já está a acontecer de forma mais ou menos tímida, nomeadamente no Oeste, com frutas e hortícolas, no Vale do Tejo, hortícolas e horto-industriais e no Alentejo, fruta de caroço e frutos secos, com um sucesso assinalável. Para além destes, existem os sectores do vinho e do azeite, que têm sido objecto de novos e continuados investimentos. E, atenção: à mesma escala territorial, ou seja, não como país, mas em regiões específicas do nosso território, também os cereais e a pecuária serão objecto de investimento. Não é à toa que a segurança alimentar e as reservas de alimentos se começam a colocar como “bens públicos” que é necessário valorizar.

É claro que, para que esses investimentos se concretizem e se desenvolvam, é necessário que se verifiquem outras condições, entre as quais a existência de procura pelos produtos alimentares em causa. Mas acredito que as nossas sociedades continuarão a evoluir no sentido de uma maior equidade social, o que, a par com o aumento da população mundial, se traduzirá num acréscimo substancial de procura de produtos alimentares, criando oportunidades a que devemos estar muito atentos. •